Flowerville é um condomínio de luxo, com arquitetura e infra-estrutura modernas, mas comandado por senhor que age como um grande patriarca, um caudilho. O empreendimento só foi possível por causa de uma escusa troca de favores feita durante o governo militar, lembrando de como o capital no Brasil esteve vezes demais ligado ao Estado. Essa mistura de moderno e antigo integra toda a narrativa e, apesar do esforço da cúpula de Flowerville em continuar “saltando à frente” e ignorar os problemas ainda abertos, é o passado que ditará os rumos do enredo.
A epígrafe do livro sobre a “máscara de puro sonho” é tirada da série de quadrinhos Sandman, de Neil Gaiman. Mais do que uma citação, a referência simultânea aos quadrinhos e ao universo onírico é incorporada profundamente na linguagem e na história. O grotesco e o absurdo não aparecem como uma exceção, mas como parte do modus operandi de Flowerville. Mais uma vez, tal como a mistura do moderno e arcaico, essa é uma abordagem que serve muito bem para o Brasil em geral, um lugar em que, hora ou outra, recebem-se notícias como uma adolescente encarcerada com homens. Enfim, o absurdo é produto da nossa “maquinaria nacional”, e infelizmente não podemos pensá-lo como um desvio isolado.
Em clima de retrospectiva pessoal deslavada, um motivo de alegria nesta terra em que, como comprovam dados oficiais, os escritores sobrepujam numericamente os leitores: “As sementes de Flowerville”, novela satírica que lancei pela editora Objetiva aos 42 minutos do segundo tempo de 2006, germinou em 2007 e, para completar o bom ano, foi parar entre os quatro semifinalistas da primeira edição da Copa de Literatura Brasileira. Mas quem costuma aparecer neste blog já sabe disso.
O que eu ainda não disse é que, além dos debates que rolaram no site da competição, gostei de ler a pequena resenha acima no blog de Marco Polli. Não, ela não contém quase nada daquela substância opiácea conhecida como “elogio”, mas é uma leitura sagaz e isso, acredite quem quiser, vale mais que um caminhão de adjetivos.
Polli foi um dos jurados da CLB, com a missão de julgar outros livros, mas leu um punhado deles porque quis e escreveu em seu blog sobre cada um resenhas curtíssimas, que seria melhor chamar de notas: “Boris e Doris”, “Mãos de cavalo” e “O movimento pendular”, além do meu. Ler esses textinhos leva menos de dois minutos, e nenhum segundo é perdido. Arguto mas curiosamente sóbrio, econômico em “declarações de gosto pessoal”, ali está um… leitor!
Sobre OMP, de Alberto Mussa, é certeiro:
Mesmo que nunca chegue a acontecer, a traição amorosa joga uma sombra que é determinante para moldar os relacionamentos. Ela está sempre lá, em maior ou menor intensidade, e os parceiros realizam mentalmente os seus cálculos de probabilidades.
Para mim, o melhor foi ver destacada a liga de futuro e passado que é uma marca de Flowerville, fonte de mal-entendidos em leituras mais simplórias – um tempo cubista. O fato é que nada, bandas de rock ou programas de TV, bate cronologicamente naquele mundo: Kikos Marinhos, Franz Ferdinand, celulares proibidos, o pior período da ditadura militar, a data da demonstração do teorema de Fermat, nada. Sobre a mesa de trabalho de um personagem importante há uma metonímia desse efeito: um monitor de LCD ao lado de um telefone preto daqueles antigos, pesadões.
Não: em vez de futuro, melhor pensar na cara-de-pau do futurismo low budget de Godard em “Alphaville”. E se isso for alguma clamorosa indução de leitura, à qual nenhum autor deveria sucumbir jamais, peço desculpas, mas esse fim de ano, mas esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo.
Feliz 2008 a todos.
19 Comentários
Parabéns Sérgio.
Já está na fila para leituras de 2008. Sabe como é… estou sempre atrazado para pegar o bonde do zeitgest.
Mas antes tarde do que mais tarde.
Abraços Sérigo, feliz 2008 para todos nós.
Não é um pouco feio fazer auto-propaganda?
Oferecer aos amigos o que fez de melhor é sempre um gesto generoso. Li e gostei.
Essa mistura de telefones pretos com telas de LCD foram antecipadas também pelo filme Blade Runner, não acha, Sérgio?
Aquele mundo asséptico de 2001, Uma Odisséia no Espaço nunca mais fez sentido depois desse filme (do livro?), de 1982. O futuro é poluído, cheio de gente e, cada vez mais, uma mistura de modernidades com antigüidades, aqueles prédios antigos com um monte de aparelhos de ar condicionado grudados no lombo.
De qualquer modo, desejo festas inesquecíveis para todos!
Puxa Magnificat, tem razão: é horroroso. Da próxima vez que um livro meu tiver um bom ano, prometo disfarçar e sair assobiando. Boas festas!
Daniel e Mr. Writer, abraços fortes aos dois. Espero continuar a vê-los por aqui com a mesma assiduidade em 2008. Que promete ser um ano de boas novidades aqui no blog. Tomara que seja para todos nós.
ótimo 2008 pra todos nós.
( e sobre o livro, rs, vez em quando quando vejo um canalhazinho pensando-se gostosão (podem-se trocar os sufixos)desejo-lhe, a ele, uma beijoca adulta, mas com aparelho de dentes de metal. pros amigos explico.)
Pérsia: hehe, recomendo pegar leve na crueldade com seus canalhazinhos. Ralador de carne é algo que só o Peçanha em pessoa merece. Um abraço.
Que coincidência! Outro dia pensei sobre esse “futurismo” com muitas aspas do Sementes. Estava atravessando a “maravilhosa” ( também com muitas aspas) Av. das Américas, e percebi que na escuridão daqueles canteiros que separam as duas pistas, uma pessoa poderia ser facilmente assaltada, estuprada ou assassinada, que passaria despercediba pelos carros em velocidade. Mas o que eu mais gostei mesmo no livro foram os imensos ferro velhos. O que vai se fazer com tanta sucata não é só preocupaçãode neo-ambientalista… Bom, de quelaquer forma, que 2008 não seja mais um passo no caminho do mundo que o livro pinta.
Abraços a todos.
Se é feio fazer auto-propaganda? Feio mesmo é bater na mãe!
Desejo a todos os leitores o blog do Sérgio (que descobri há alguns meses e que não parei mais de ler), e ao próprio Sérgio, um ótimo ano em 2008, cheio de bons livros para ler, boa música pra ouvir, etc, etc, etc.
Abraços,
Sérgio Karam
Feliz ano novo, Sérgio. Muito sucesso em 2008, que você merece.
Jonas, Pedro e Sérgio: obrigado pela força, abraços grandes.
Passando para desejar um ótimo 2008 a todos os leitores, comentadores e ao Sérgio em especial. Embora (quase) sempre invisível, estou sempre presente, curtindo os comentários. Adoro gente inteligente! Abracos, Frida.
Nada contra o livro, que não li, mas ouso perguntar qual seria a importância em se “parar entre os quatro semifinalistas da primeira edição da Copa de Literatura Brasileira”(!), apitada por críticos notoriamente desconhecidos (e desaparelhados)? Seria estratégia de sobrevivência do autor? Isso é algum tipo de piada interna? Não sei o que falta mais: assunto, crítica literária ou literatura. Que 2008 seja mais feliz…
Ô Alfredo, você não deve ter lido as resenhas da Copa, caso contrário veria que se trata de gente que sabe expor sua opinião e tem bagagem suficiente para escrever sobre livros, concordemos ou não com eles. Acho que as “pequenas” vitórias são muito importantes. No mais, Sérgio e demais amigos bibliófilos virtuais, desejo a todos um ano bom
volto para a praia
Sérgio,
Há momentos em que o mais elegante é calar…
Feliz 2008 (ano em que aguardo o Flowerville II)!
(Que saudades do Bemveja…)
Magnificat: elegante mesmo é ser compreensivo com as viúvas do Bemveja. Mas quem sabe ele não resolve abrir seu próprio blog em 2008?
Feliz 2008 para você também, Sérgio. Que o seu blog continue a todo vapor nesse próximo ano. Abraços!
Obrigado, Lematta. Tudo de bom pra você, inclusive muitos (novos) leitores.
Rapaz, mas que este post ficou meio feio, ficou mesmo. O Magnificat está certo nisso aí. Eu queria elogiar o Polli, e ao mesmo tempo queria dizer algumas coisas sobre o meu livro, e não tinha como misturar essas coisas. Soou pimpão, o que estava longe das minhas intenções – eu devia ter desconfiado daquele conhaque. Não vou tirar do ar porque já foi, mas que fique registrada aqui uma moção de “ops”.
Mesmo assim, não posso concordar com Alfredo quando ele ataca a Copa de Literatura Brasileira. Que os resultados não importem muito, está certo, copa é copa. Mas até os quelônios da Quinta da Boa Vista sabem que a CLB é uma novidade muito bacana nesta terra de jabutis. Com todos os seus jurados “desaparelhados” – e alguns eram mesmo; outros, bem ao contrário – é um “prêmio” divertido que já se mostrou capaz de pôr as pessoas para discutir literatura. Tem tudo para prosperar, se tivermos sorte. Não merece a derrisão de ninguém.
Abraços a todos.
A Copa de Literatura Brasileira já cumpriu sua função: saiu outro dia na primeira página do Prosa & Verso, d’O Globo. O que, nesta terrinha em que vivemos, é o máximo que pode desejar qualquer pretendente à fama literária. Ganhou seus 15 segundos de exposição junto aos “antenados literários”
¬¬
2008 é o ano de nova Copa, e muita água ainda vai rolar debaixo dessa pinguela.
Quanto ao Bemveja, pelo que sei (e sei pouco, confesso) ele pretende lançar um romance em 2008.