“Não defendo a trama como representação acurada da vida, mas como forma de manter o leitor lendo”, disse Kurt Vonnegut. “Se você exclui a trama, se elimina o desejo de alguém por alguma coisa, exclui o leitor, o que é uma coisa muito feia de fazer.”
Também acho feio excluir o leitor. No entanto, o enredo, a trama, o plot – a história, enfim, de preferência envolvendo gente – é um fundamento clássico que foi perdendo valor para boa parte da literatura escrita do século 20 para cá. Disseminou-se nesse período a crença de que “escritores sérios” devem antes de mais nada achatar ou desidratar a dimensão da fábula, que seria coisa de autor popular ou populista, se quiserem voar alto nas questões mais relevantes da forma.
Hoje há mesmo literatos cascudos – conheço dois ou três – que chegam ao extremo de odiar intrigas, peripécias, escolhas, surpresas, que têm alergia a coincidências e abominam detalhes habilmente sonegados pelo narrador, que espumam de raiva com cartas que são abertas e mudam o rumo das coisas (ou não são abertas e mudam o rumo das coisas), pois para eles é inferior qualquer literatura que utilize o enredo de modo mais sedutor, enfático ou colorido.
É que todas as histórias já foram contadas, diz essa subespécie frugal de literato, empinando o nariz enquanto mastiga a fibra dura de exercícios de linguagem.
Permitam-me discordar. História não é coisa a que se possa por fim. História não acaba nunca, ou só acaba quando acabar o homem (a mulher também, viu pessoal?), e depois disso, que diferença faz?
Os exercícios puros de linguagem, estes sim, não duvido que já tenham sido quase todos feitos. De qualquer modo, desejo boa sorte a quem quiser continuar tentando provar que não. Estarei atento à poesia, onde achados nessa área são mais frequentes.
Mas aqui estamos falando de prosa, um tipo de escrita que nos tempos modernos é o veículo natural da história, como foi na antiguidade a poesia. O preconceito contra a história, no âmbito da prosa, é um disparate e um atraso de vida.
Isso obviamente não quer dizer que a boa prosa de ficção possa prescindir de brincar com a textura da linguagem. Separar forma e conteúdo de modo tão tosco é o começo do erro da turma enredofóbica. O jeito de contar uma história vai sempre valer tanto quanto ou mais do que o entrecho em si, mas quando os dois se harmonizam – e o exercício de linguagem não é mais puro, mas aplicado – é que temos o grande prazer da literatura. Ou pelo menos assim parece pensar o leitor, como lembrou Vonnegut.
É sintomático que essa lembrança tenha vindo de um nome da literatura anglófona, que tem uma tradição de trama consideravelmente mais forte que a nossa. Sendo um ramo da portuguesa e, como ela, afrancesada, nossa literatura é mais vulnerável à autocomplacência e à eventual exclusão do leitor. Será por acaso que a literatura de língua inglesa vem dando uma surra na francófona faz tempo?
24 Comentários
Ótimo post, Sérgio. “Isso obviamente não quer dizer que a boa prosa de ficção possa prescindir de brincar com a textura da linguagem”. Gostei dessa em especial. Esse final de semana aconteceu o Fantasticon, que reúne a galera de literatura fantástica, e é algo que a gente sempre debate, montar uma trama de entretenimento sem o esvaziamento da linguagem. Esse ano com Nelson de Oliveira, Moacyr Scliar e Ademir Assunção, tivemos novas camadas de cores no discurso pelo lado “mainstream”. Um tema sempre válido de se levantar. Abraços!
Concordo plenamente. Escrever bem não quer dizer prescindir da trama e dos enredos. Esse pessoal tinha quer ler, por exemplos, os contos e novelas do Henry James ou do Tchekhov. Só pra começar!!!
“…busca na literatura uma experiência radical. Não está interessada em enredos. […] Para a autora, a literatura nunca será um simples entretenimento. Será sempre uma viagem em busca de algo.”
“- Que tipo de literatura não lhe atrai de maneira alguma? Por quê?
– As de enredo. Acho um saco saber ‘o que aconteceu’.”
Isso é de uma entrevista que vi por aí com uma autora brasileira. Fair enough. Questão de opinião e coisa e tal. Pois foi baseado nesse mesmo princípio que, depois de ver essa declaração, coloquei o nome dela na minha listinha de ‘Não Ler’.
Oi, Sérgio, ótimo artigo! Rende uma tese, não?
Livro no qual o leitor não se torna co-autor, não mergulha e não sente, é um livro morto, que serve apenas para afagar o ego de quem o escreveu. Mesmo em livros didáticos ou científicos é visivel a diferença na iluminação da pena de quem o compôs, assim como são visíveis os resultados da leitura.
Mais do que qualquer coisa, o livro é um mergulho não apenas no universo interno de quem o criou, mas principalmente de quem o lê e ninguém quem mergulhar em um tanque de concreto. Águas cálidas são sempre mais convidativas.
Abraços.
Sérgio, eu não fiz faculdade de letras, não freqüento círculos culturais nem brinco de ciranda-cirandinha em rodas literárias. Sou apenas um leitor; alguém que, de tanto cultivar o hábito de ler livros, se tornou um tanto quanto exigente a respeito dessa coisa fugidia chamada qualidade. Por isso, não consigo reprimir um sentimento de perplexidade quando me dou conta da existência desse tipo de “polêmica”. Então é verdade que existe mesmo, de carne e osso, esses tais de “literatos cascudos”, gente que se ocupa de verberar o enredo das histórias por considerá-lo indigno da altanaria da literatura? Onde eles se reúnem? De que sodalício eles tomam parte? Pois, salvo um engano redondo de minha parte, acredito que ninguém dá a mínima pelota a esse tipo de crítica. Boa literatura (estarei eu errado?) é aquela bem escrita, mas que, além de ser bem escrita, informa, entretém, instrui, ensina e eleva. Boa literatura é o ofício a que se dedicaram Cervantes, Stendhal, Conrad, Júlio César, Homero, pessoas que tinham o que dizer.
O domínio pleno da linguagem, se levado ao seu paroxismo, conduz a lugar nenhum, como já provou aquele fanfarrão chamado James Joyce e seu infernal Finnegans Wake. Os deuses da literatura (que los hay, los hay) ainda hão de se vingar desse maldito irlandês.
Vale
Totalmente de acordo. Quem não gosta de uma bela forma com uma bela história e de uma bela história com uma bela forma?
Abraços
Vinícius Antunes
http://cronicasdumasviagens.wordpress.com
Sérgio, sem querer desmerecer seu artigo, que me pareceu pertinente e sensato, acho que esse assunto merece uma lauda mais parruda.
Vejo essa questão como central, e a maneira como a cena literária do Brasil vai lidar com ela diz muito sobre o próprio futuro da atividade no país.
Existe um clube no Brasil, firmado por acordo tácito, dos “Autores que se levam a sério”.
Esse clube informal representa uma corrente bastante intrigante, a dos amantes da literatura sem leitores, que só é plausível dentro da esquizofrenia afetada dos seus membros.
Há tempos torcemos o nariz para as listas de mais vendidos dos jornais e revistas. Cabe aqui nos perguntarmos se o leitor abandonou o critério na hora de escolher a que leitura vai dedicar seu tempo (cada vez mais concorrido), ou foi abandonado por autores que se crêem tão geniais a ponto de poderem prescindir de leitores.
Ótimo post, Sérgio.
Sergio,
brilhante e um verdadeiro alento encontrar as suas palavras. Defendo essa ideia há tanto tempo e fico muito triste quando encontro declarações de “literatos” que desmerecem a narrativa, o enredo que enlaça, que prende, que estende tapete a personagens que deixam saudade.
E você usou a palavra perfeita: preconceito. Enquanto existir preconceito no meio literário, estaremos lutando contra o próprio espelho, na briga para se ter reconhecimento da literatura nacional e um país de leitores.
Adorei seu texto.
Parabéns!
(Obs: tarefas múltiplas me deixaram um pouco afastada nos últimos dois meses da leitura de todos os blogs e sites que acompanhava. Mas é com alegria que volto a ler um texto seu hoje)
Ana, Molica, Vinicius, Laura, Eric e demais amigos, obrigado pelas palavras gentis. É muito bom ver tanta gente concordando com a tese de que nossa literatura sofre de uma certa enredofobia, dá um alento mesmo, como disse a Ana. Mas fico pensando onde estarão nesta hora os defensores da tese oposta, que costumam ser tão eloquentes quando pregam para convertidos. Ah, claro, eles devem ler outros blogs… Abraços a todos.
Sérgio,
Excetuando certas tiradas irônicas, o seu post trata uma discussão em parte natimorta e em parte recorrente e importante, ao meu ver. Partindo do princípio que um blog sobre literatura tem certo dever de promover uma discussão séria em torno do objeto “literatura”, comento algumas coisas.
Primeiro lugar, eu acho que o assunto da trama na literatura contemporânea não funciona muito bem sem exemplos concretos – ela sempre cai num gostei/não gostei infrutífero pra discussão em si. Claro que eu entendo que não é pretensão sua encerrar um assunto tão grande num pequeno post desses, mas penso que o tema, extremamente importante se considerarmos que ela afeta diratemante o raro leitor de literatura brasileira contemporanea, deveria ser tratado concretamente em alguma obra específica. Sim, estou sugerindo um post sobre por exemplo o livro da Carol Bensimon, Sinuca embaixo d’água, que rendeu boas discussões em algums blogs. Alguns acusavam o livro de “não acontecer nada”, ou seja, não ter trama. O livro da Carol é um exemplo de contemporaneidade gritante, principalmente pra quem nasceu a partir da década de 80. Há uma identificação feroz ali pra essas pessoas.
A questão de ser natimorto e da ironia é porque, pra mim pelo menos, tratar com ironia engraçadinha certos aspectos da discussão não demonstra nem leva a lugar nenhum além de eliminar uma parte do público que está realmente interessada nessa conversa.
Enfim, só algumas opiniões e pensamentos em voz alta.
Abraços.
Leonardo, não costumo mandar recados cifrados, e se não falo do livro de Carol Bensimon é simplesmente porque não o li. Nem sabia que ele vem sendo acusado de ser um romance em que “não acontece nada”, como você informa. Acho ótimo que pessoas da sua geração – pois suponho que seja a sua – encontrem ali uma “identificação feroz”. Maravilha, precisamos de coisas desse tipo. Mas não entendi você falar de “ironia engraçadinha”, o que só posso interpretar como um sinal de compreensão bastante limitada do que escrevi. Escrever com verve e ser “engraçadinho” são coisas muito diferentes. Meu pequeno artigo tenta delinear de forma não acadêmica alguns conflitos bem profundos, velhos de décadas, da literatura brasileira. Se você só queria vender o livro da Carol, acho que conseguiu. Mas se acha a discussão “natimorta”, faltou dizer por quê, e de preferência sem casuísmos, levando em conta que resenha é uma coisa e artigo é outra. Um abraço.
Sérgio,
Desculpe, não fui claro, você tem razão.
Quando eu falei sobre o romance da Carol, eu quis somente sugerir um post sobre um romance em que esse debate sobre a ausência de trama poderia emergir mais concretamente, por se tratar de uma história acusada de não “acontecer nada”, coisa que discordo eloquentemente.
Sobre a ironia, devo realmente pedir desculpas, pois o que me levou a escrever isso não foi nada no presente post, mas sim em algumas impressões esparsas que me ficaram da leitura geral do seu blog. Sentimento de encômodo que às vezes me passa alguma ou outra tirada. Sei bem a diferença entre verve e irônia, e sim, eu compreendi o seu post e não tive uma leitura limitada. E também por eu não ser um acadêmico das letras e ter compreendido seu artigo (não entendi a menção a distinção entre resenha e artigo, devo dizer) é que pude comentar aqui.
Novamente tem razão: falha minha em não ter apontado o motivo de eu ter dito “natimorta”. Isso se refere a um debate entre forma e conteúdo que, parando pra pensar, não existe. Não consigo imaginar forma sem conteúdo, mas consigo sim visualizar a forma em detrimento do conteúdo (que, ao meu ver, em outras palavras quer dizer a trama sendo somente um suporte para as emoções dos personagens).
Levando em conta que nisso você se refere não aos escritores, mas sim a esses acadêmicos pregadores da morte da trama, eu não imagino escritor sério que não almeja um equilíbrio entre a expressão literária e a trama que deverá levar a essa expressão.
Foi pensando em tudo isso e em como a abstração surge facilmente nessa conversa que sugeri como MERO EXEMPLO o romance da Carol como motor da discussão. Não tentei aproveitar um espaço de discussão pra vender um livro e nem entendo por que isso foi sequer levantado (impossível não pensar em um ataque mesquinho contra mim – que no fundo tem muito a ver com a ironia vazia que fica após a leitura de alguns posts). Mas nada disso importa, somente a discussão sobre literatura.
Espero ter sido um pouco mais claro.
Abraços.
Ótimo post, Sergio. Cncordo em número, gênero e grau.
Maria José
Uhm, mas a trama é tão “forma” quanto a linguagem, não? A literatura deveria ser construção. Pode parecer piegas, mas o escritor deveria escrever com honestidade. Não acho que um bom romance é um bom romance porque é entupido de plot devices, nem porque cada frase é escrita com um recurso linguístico diferente; o bom romance é aquele que constrói significação pro leitor.
Leonardo, três coisas rápidas.
“Vender o romance da Carol” não é sequer um ataque. Nunca me passou pela cabeça que você estivesse levando grana ou coisa parecida. Vender, nesse caso, é divulgar, promover, coisa que leitores empolgados têm todo o direito de fazer.
A segunda: se minha ideia fosse opor a forma ao conteúdo, como você entendeu, o texto seria mesmo um aborto. Mas é justamente o contrário: “Separar forma e conteúdo de modo tão tosco é o começo do erro da turma enredofóbica”.
Finalmente: acho a ironia um recurso precioso. O que julguei injusto no seu ataque foi o “engraçadinho”, não a ironia.
Um abraço.
Lembro de uma entrevista, não sei em que lugar, talvez Cult ou Entrelivros, do Gonçalo M. Tavares, em que ele diz que quando começa a escrever não tem previamente uma história na cabeça – já escrevi assim e garanto que é muito legal. Acho que o século XX nos trouxe inúmeras conquistas, em diversas áreas, e a literatura não ficou de fora. O que quero dizer, é que a falta de trama, ou escrever apenas levando em conta climas, personagens, insinuações, poesia, sem levar em conta excessiva a trama, acho que é mais um desses legados que Joyce, Borges, Cortázar, e tantos outros que tiveram a ousadia de ousar, nos deixaram, e que compete a nós, iniciantes ou não, dessa ou daquela geração, levar em conta na hora de escrever. Pois, se não estou enganado, é mais uma opção que temos para fazer boa literatura. Continuo achando que a pasteurização, a regrinha babaca, só empobrece e não leva a lugar nenhum, só a mesmices. Não acho que reiventar a arte de contar histórias também leve a algum lugar, mas defendo, veementemente, a inventividade e as novas formas de escrever. Sem regrinhas, sem receitas de bolo, que tal acrescentarmos em vez de limitarmos a isso ou aquilo, a bom ou ruim! Quero liberdade para escrever! Essa coluna, ao analisar o livro do Cuenca, parece que também leva isso em conta, mas me estranhou o recado do Sérgio, ao perguntar onde estavam os defensores da enrodofobia!! Acho que um deles está aqui.
A forma pode prescindir do conteúdo e o conteúdo pode prescindir da forma, mas não devem… ah, não devem, mesmo. Belo post, Sergio. Assunto sempre atual, esse.
Sérgio, não se encomode com isso.
do verbo encomodar…criado abaixo…
Mesmo chegando atrasado neste papo, não posso deixar de comentar: para mim, quando um destes luminares diz “eu odeio o enredo” está dizendo por outros meios “eu odeio o leitor”.
Não foi à toa que elegi seu blog como o único digno de ler, nesses dias de literatura hypermodernosa. Comentários e análises certeiros, domínio conscientemente estético da linguagem. Parabéns!
Sou novato no blog e achei interessante a discussão, porque penso sempre em livros que considerem o leitor e conduzam uma boa história. Como pretenso escritor, venho me esforçando em reflexões sobre um determinado genero, acho que até relativamente inédito, que seria algo como “literatura homoerótica”. É possível o respeito literário a uma narrativa que utilize de liguagem explicitamente descritiva de relações sexuais, como se fosse assistir um fime “pornõ” em uma tela? Claro, situações pertinentes com a trama, que tenham a ver com o desenrolar dos fatos. Isso seria literatura ou “coisa de Internet”?
É isso mesmo, amado escritor! Nem todas as Histórias foram contadas e é muito feio excluir o leitor. Há muita História a ser contada… muita… iiii… Conta outra, Sérgio.