A única resposta consistente para a dúvida enunciada no título acima, uma das mais resistentes de toda a literatura do século XX (e atualizada de forma fortuita por um imenso blatídeo que apareceu há pouco aqui no banheiro), é que não sabemos. O texto de “A metamorfose”, de Franz Kafka, simplesmente não nos fornece elementos suficientes para dizer. Foi mesmo uma barata, no entanto, o bicho que pousou no imaginário da maior parte dos leitores da novela que começa com o pobre Gregor Samsa acordando em sua cama transformado num inseto. Por quê?
Provavelmente porque o destino de Samsa é asqueroso demais e não há nada, em todo o reino animal, que supere a barata na escala da asquerosidade. Elementar, meu caro Watson, poderia acrescentar neste ponto um amante do lugar-comum – uma frase que o detetive inglês Sherlock Holmes nunca pronunciou em nenhuma das histórias escritas por Arthur Conan Doyle, o que, juntamente com a “barata de Kafka”, prova que nem sempre o texto é soberano. Na esteira do êxito popular de um livro costuma vir uma certa aura, uma sobra de sentido contra a qual é difícil lutar.
No caso de Holmes, a frase que não existe textualmente nos livros foi propagada em adaptações cinematográficas. No caso de Samsa, a motivação para o sucesso da barata parece ter raízes mais profundas na imaginação dos leitores, prescindindo de auxílio externo.
Nem uma representação (ilustração acima) como a de Robert Crumb para o bicho no livro “Kafka de Crumb” (lançado no Brasil pela Desiderata), em que se vê claramente um besourão, conseguiu afugentar a barata da imaginação coletiva. Além do mais, tudo indica que também é incorreto supor que Samsa se transformou num besouro grande, num escaravelho.
Se você é um desenhista encarregado de ilustrar a história, não tem muito como evitar certa precisão. No entanto, a nebulosidade estava certamente nas intenções de Kafka: assim como em nenhum momento a narrativa tenta explicar como a metamorfose se deu, as palavras que descrevem o animal são vagas.
Já no primeiro parágrafo, o original alemão fala em ungeheueren Ungeziefer, “monstruoso bicho repulsivo”. Ungeziefer não é um termo técnico, mas um nome genérico bastante amplo para bicho nojento. O português não tem um bom equivalente para isso – em certa acepção, “praga” poderia dar conta do recado. A palavra alemã costuma ser traduzida para o inglês como vermin ou bug.
Que se trata mesmo de um inseto – provavelmente da família dos coleópteros, que inclui besouros, joaninhas e vagalumes, mas não baratas – fica sugerido por escassas pistas descritivas espalhadas pela história. Há uma única ocasião em que o monstro em que Samsa se transformou é chamado de Mistkäfer, “escaravelho, rola-bosta”, mas quem diz isso não é o narrador e sim a empregada da família, que, como observou Vladimir Nabokov ao examinar o caso, estava provavelmente tentando ser “simpática” ao patrão.
Em seu ensaio-conferência sobre “A metamorfose”, o autor de “Lolita” – talvez a pessoa mais indicada para tratar do tema, por reunir as credenciais de escritor e de entomologista – afirma não ter dúvida de que o monstro “não é tecnicamente um escaravelho. É apenas um beetle (besouro) grande. Devo acrescentar que nem Gregor nem Kafka enxergavam o bicho muito claramente”.
Pouco importa: a barata sobreviveu a Kafka e a Nabokov. É provável que sobreviva a todos nós, como dizem ser o destino de sua espécie.
2 Comentários
E Kafka não teve tempo de sofrer o terror nazista… mas teve tempo, com certeza, de ouvir xingamentos fortes do antissemitismo europeu. Algumas imagens do “judeu” (aproveitadas e ampliadas pelo Terceiro Reich) eram (em inglês, sorry) “parasites, leeches, devils, rats, bacilli, locusts, vermin, spiders, blood-suckers, lice, and poisonous worms”. A história se repete, com outras vítimas….
Encontrei uma barata na cozinha.
Eu olheira pra ela, ela olhou pra mim.
Ofereci a ela um pedaço de pudim.
Ela disse: – sim, vem cá ficar comigo.
– Sim, vem kafka!
Viu, era uma barata.