Primeiro era o prazer infantil de pôr uma palavra depois da outra, encaixes de dominó. Depois que os encaixes em si perderam a graça, fáceis demais, veio a ambição de usar as sequências de peças para desenhar coisas no chão: bichos, casas, cidades. Ainda era uma ambição infantil, mas já continha o germe da fase seguinte, quando os desenhos começaram a parecer bobos, constrangedores, esquemáticos em sua bidimensionalidade de criança. Do lado de fora do jogo ficava o mundo inteiro com seus bichos de verdade, casas de verdade, cidades de verdade. Para desenhar o mundo em sua profundidade enigmática era preciso criar novos encaixes, superpor as peças do dominó rumo a uma nova dimensão: aspirar ao teto. Isso abriu uma fase de dificuldades imensas, torres penosamente empilhadas desabando sob o peso daquela última peça chamada ponto final, e com ela a temporada da frustração permanente – o fracasso como modo de vida – que só não provocou o abandono do jogo porque descobria-se na própria persistência uma nova e perversa modalidade de prazer infantil. Muitos anos depois, quando as torres começaram a se sustentar em pé e o espaço entre o chão e o teto se encheu de formas belas com suas sutis perspectivas, suas passagens secretas entre planos impensáveis, seus terraços recendentes a jasmim dando para lagos lisos de cobalto ao pôr do sol, só então nasceu a certeza de que tudo aquilo, não sendo mais obra ao alcance de uma criança, era ainda, e sempre, nada além de um prazer infantil. Foi um momento terrível. O mundo fora do jogo voltou a pulular, sua profundidade mais enigmática do que nunca, e agora sobrepunha-se a ele o mundo dentro do jogador. Fundi-los era um desafio tão invencível quanto a morte, mas já não havia escolha. Primeiro foi preciso derrubar aquela beleza toda – torres, terraços, jasmim, pôr do sol. Depois, uma palavra depois da outra, criança encaixando peças de dominó, recomeçar.
4 Comentários
Lindo texto!
Obrigado, Licia.
Quem escreve, tenho certeza, sentiu o mesmo arrepio que eu.
É isso o que sobra, afinal.