Acredito ter sido, no fundo, o inconformismo com o fato de literatura e vida parecerem habitar duas dimensões tão separadas da existência o que nos levou a inventar um jogo intrincado que misturava folhetim com uma espécie primitiva de RPG – este, embora já existisse, estava longe de fazer sucesso no Brasil e não pode ser considerado uma influência.
Estávamos na primeira metade dos anos 1980 e éramos quatro amigos formandos ou recém-formados em jornalismo. Todos apaixonados por literatura, estávamos meio perdidos e talvez assustados (eu pelo menos sim) com as promessas de tédio infinito e massacre cotidiano da criatividade e da alegria que o mundo do trabalho remunerado parecia estender horizonte adentro, a perder de vista.
Houve um tempo em que, zeloso de uma coisa arcaica chamada vida privada, eu não nomearia – ou nomearia com pseudônimos – os outros três daquela turma. Hoje esse tempo parece distante, talvez porque eu esteja sob a influência da furiosa evasão de privacidade promovida por Karl Ove Knausgård. De todo modo, não há nada que comprometa ninguém nessas memórias: nem o professor Luiz Carlos Mansur, nem o roteirista David França Mendes, nem o crítico de cinema e escritor Rogério Durst (foto).
Além do mais, qual seria o sentido de esconder os personagens se só estou me lembrando disso agora porque o Rogério morreu, de insuficiência cardíaca, na quarta-feira da semana passada, aos 54 anos?
Embora tenha tocado ao Mansur o papel perfeitamente adequado de Deus, foi o Rogério quem acabou se saindo como senhor absoluto daquela brincadeira. Devíamos ter desconfiado que seria assim. Antes, porém, que isso possa começar a fazer sentido, é preciso explicar em linhas gerais a mecânica do jogo literário que nós inventamos.
A ideia era ter, no fim das contas, um romance policial. Um romance policial escrito a oito mãos, com três autores respondendo cada um por um personagem-jogador e um deles no papel divino de moderador e senhor do universo.
Ao Mansur, então um futuro crítico musical que acabaria se mandando do Brasil para virar acadêmico em Portugal, coube criar o mundo, estabelecendo as bases da história: o elenco de personagens secundários e os conflitos principais.
Os mortais, isto é, os jogadores propriamente ditos, deveriam, antes de escrever seus capítulos semanais, interagindo com a paisagem proposta por Deus num esforço permanente para assar suas próprias sardinhas na brasa da história, agendar com Ele o “uso” de determinados personagens e cenários, marcando dia e hora para evitar superposições.
Ah, sim: só Deus lia o que os mortais escreviam, embora tivesse também a missão de passar a todos um resumo da semana em que a maior parte das atividades de cada personagem-jogador era relatada – com o veto estratégico de apenas duas informações cruciais por cada um. Uma a critério do autor, a outra a critério do próprio Deus.
Parece uma confusão dos infernos, não? Era bem pior que isso. Era totalmente absurdo, inviável, e em poucas semanas tínhamos na mão, não um romance, mas um desastre ferroviário pavoroso. Tremenda falta do que fazer. Foi divertidíssimo.
O texto do Rogério, futuro crítico de cinema que marcaria época no jornalismo carioca com suas sinopses mordazes de filmes na TV (uma pequena amostra aqui), jantou os nossos porque ele era àquela altura o escritor mais maduro da turma. Não na idade, mas no encontro de certa voz personalíssima.
Enquanto nós (eu pelo menos sim) cometíamos o erro óbvio de entrar no jogo tateantes, tentando ganhar tempo, aprendizes à procura de um estilo, o Rogério trazia pronta a mistura coloquial, engraçada e rigorosa de literatura noir com carioquice popular que ia desenvolver em livros como “Madame Satã – Com o diabo no corpo”, perfil publicado pela coleção Encanto Radical da editora Brasiliense, e o delicioso romance “Anjo caído” (Xenon).
Aprendi com ele que a literatura é um pega-pra-capar como qualquer outro ramo da existência – nem tão distante da vida, afinal. A diferença é que os personagens que morriam aos borbotões em nossa história policial insana não deixavam um vazio tão grande na paisagem afetiva dos mortais sobreviventes quanto a morte do Rogério deixa agora na minha.
O Arthur Dapieve – que então ainda não conhecíamos, mas que logo ia se juntar àquela turma de escritores aspirantes – escreveu ontem em sua coluna no “Globo” um texto de despedida bem melhor, mais sensível e sensato do que este, que comete o erro óbvio de falar mais de um joguinho literário menor do que do amigo maior que pretendia homenagear.
Acho que vou precisar de mais tempo. Talvez não aprenda nunca.
Nenhum Comentário
Os comentários estão fechados.