Muito interessante o ensaio do crítico argentino Damián Tabarovsky publicado ontem no bom caderno Ilustríssima da “Folha de S. Paulo”, sob o título “O escritor sem público”. Melhor avisar logo que se trata de coisa cabeçuda, cheia de frases como esta: “Nessa comunidade negativa, a leitura não se impõe sob o modo da distribuição (como no mercado) nem no da circulação (como na academia), mas como generalidade imaginária da particularidade”.
O interesse do texto, apesar da opacidade, reside no fato de o autor buscar declaradamente uma superação do impasse em que parece ter empacado o debate literário das últimas décadas: a oposição frontal e pouco inteligente entre literatura “de mercado”, com sua ênfase na narrativa, e literatura “acadêmica” (isto é, valorizada por acadêmicos, não necessariamente e na verdade quase nunca escrita por eles), com sua apologia do trabalho de linguagem.
Essa busca de síntese tem valor em si. O problema é que, se entendi o que Tabarovsky quis dizer, sua proposta de um novo radicalismo – que ele chama de literatura “de esquerda”, tomando o cuidado de ressalvar que o rótulo não coincide com o de posições político-partidárias – desemboca na exclusão sumária do leitor: “Em troca, é preciso pensar a literatura de outro modo, a partir de outro lugar, a partir de um sem lugar. Esse sem lugar é o espaço da literatura de esquerda. A partir desse sem lugar, fala o escritor sem público”.
E nesse momento, no fim do ensaio, fica claro que o título, que parecia uma critica ao escritor incapaz de se comunicar com o público, é o exato oposto: uma exaltação do escritor sem público. Difícil não ver no texto, em vez de um diagnóstico, mais um sintoma destes tempos esquisitos, com o solipsismo do autor em contraponto perfeito ao solipsismo do leitor que o meio digital estimula, como apontou Don DeLillo aqui, num post recente.
Estaremos definitivamente condenados ao diálogo de surdos? Ou não é nada disso, basta deixar de besteira e ir ler um bom livro?
*
O futuro do livro e da literatura é o tema que estarei debatendo esta semana com o escritor gaúcho Antonio Xerxenesky numa turnê pelo Paraná, como parte do projeto Autores & Ideias do Sesc. Amanhã estaremos em Londrina; quarta-feira, em Maringá; e quinta, em Curitiba. O ciclo se completa semana que vem em Cascavel e Pato Branco.
O futuro da literatura, como o futuro de qualquer coisa, tem muito de incerto. Mas duvido que o leitor não esteja presente.
14 Comentários
Acho perfeitamente compreensível e válida a ideia de um escritor sem público.
O que não faz sentido é esse escritor querer publicar.
Ao Tabarovsky, ou aos que ele enaltece como representantes dessa corrente, uma sugestão: compre uma lousa mágica.
Sérgio,
Fiel ao lema bíblico nihil sub sole novum, lembro que, no começo do Século XX, Ortega y Gasset já havia desferido um golpe fatal a esse tipo de abordagem nefelibata. Veja se as palavras do ilustre filósofo espanhol não são uma boa resposta à proposta de Tabarovsky? Ei-las:
“Esquece-se demasiadamente que todo autêntico dizer não só diz algo, como diz alguém a alguém. Em todo o dizer há um emissor e um receptor, os quais não são indiferentes ao significado das palavras. Este varia quando aquelas variam. Duo si idem dicunt non est idem. Todo vocábulo é ocasional. A linguagem é por essência diálogo, e todas as outras formas do falar destituem sua eficácia. Por isso eu creio que um livro só é bom na medida em que nos traz um diálogo latente, em que sentimos que o autor sabe imaginar concretamente seu leitor e este percebe como se dentre as linhas saísse uma mão ectoplástica que tateia sua pessoa, que quer acariciá-la — ou bem, mui cortesmente, dar-lhe um murro.”
Lendo esse tipo de proposta, confesso adivinhar as angústias psicológicas que vibram o espírito do indivíduo que a propõe. São elas frutos daquele sentimento amargo engendrado pela inveja que acomete o sujeito de gênio banal, que pensa ser dotado de idéias com tal originalidade e expressão que o público, o sempre ingrato público, deveria aplaudir efusivamente, em vez de se entregar às deliciosas trivialidades escritas pelo Paulo Coelho. Encenando o papel do homem superior incompreendido pela multidão ignara, esse indivíduo, ressentido e ensimesmado, volta as costas ao mundo, crendo que, com esse gesto, os pilares do universo se abalarão.
Por isso, caro Sérgio, não perco meu tempo com essas besteiras publicadas nos jornais: há muitos bons livros a serem lidos ainda!
Valete
Rafael, sua erudição estava fazendo falta. Um abraço.
Ainda que se pressuponha um ‘leitor ideal’, a obra traz, invariavelmente, o “diálogo latente”, a que se referiu Ortega y Gasset (no comentário de Rafael, muito pertinente) – e lembrando o ‘dialogismo’ bakhtiniano, mesmo esse leitor ideal está atrelado ao contexto histórico, e a enunciação não teria sentido (discursivo, ideológico) se não se funda num leitor concreto. De certo modo, o ‘esvaziamento’ do leitor seria o ‘esvaziamento’ do escritor.
Duvida?
Fancamente! É como você disse: vamos deixar de besteira e ler um bom livro.
“O ‘esvaziamento’ do leitor seria o ‘esvaziamento’ do escritor”. Na mosca, Afonso!
A proposta do escritor sem público, por se assentar numa antinomia insolúvel, só pode ser realizada de uma única forma: NÃO ESCREVER. Quem não escreve (ou, o que dá no mesmo, quem apaga os vestígios de sua escrita antes que outro tenha acesso a ela) não tem público, mas também não é escritor. No entanto, se o sujeito enfileira algumas palavras e o faz de tal modo que alguém irá fatalmente passar os olhos sobre elas, pode-se dizer que ele já tem o seu público, ainda que restrito ao minúsculo círculo dos seus parcos amigos.
Que me consta, o único cultor desse gênero literário foi o Pe. Anchieta, que costumava a escrever versos na areia da praia com uma vara, versos que a onda do mar logo apagava.
Mas, voltando ao Tabarovsky, li o artigo na Folha. Apesar de toda a pretensão de “avançar outra possibilidade”, de trazer à luz algum obscuro traço da literatura contemporânea, o crítico argentino não faz senão reclamar do “mercado”, ao qual imputa todos males que acometem o meio literário, inclusive (quero crer) a baixa qualidade do seu texto. O mercado pasteuriza tudo, o mercado faz com que o romance se torne convencional (romance convencional, para ele, é aquele em que os personagens se cumprimentam e um educadamente convida o interlocutor para um café). Após um interminável filosofar, cujo clímax, em minha modesta opinião, ocorre quando a palavra alemã “volksgemeinschaft” invade o palco com pompa e circunstância, ele sentencia: já que o mercado é uma porcaria, vamos nos vingar escrevendo porcarias que ninguém quererá ler!
Reconheço: o Tabarovsky, ao contrário da maioria dos ideólogos que praticam a hipocrisia de agir contrariamente àquilo que apregoam, alia as idéias à ação. O seu texto é uma contribuição inestimável nesse louvável esforço de afugentar o público.
Sobre o mercado editorial e suas práticas (a queixa implícita no artigo – de novo o Rafael acertou) ver a iniciativa/protesto de Chantal Dalmass (sem entrar no mérito literário) contra a queima de livros.
http://chantaldalmass.zip.net/
http://gangrenadiarioentrevistas.blogspot.com
@chantaldalmass
Saudações literárias, meu nobre escritor. Parabéns pelo blog. Acabo de conhecê-lo e fiquei lendo até agora (20 post consecutivos) a sua obra. Amanhã vou fodido para o trabalho, mas valeu a pena. Um grande abraço, se possível visite meu blog http://www.esconderijo-do-observador.blogspot.com/ ou digite esconderijo do observador no google.
Meu caríssimo Sérgio,
Seu comentário sobre o texto produzido pelo Taba… seja lá o que for, é muito superior ao do “pensador” aegentino. Aquilo é nada com coisa alguma (como costumo dizer sempre que me deparo com essas pirotecnias verborrágicas). Quase que (des)qualifiquei o texto do “home” como um acinte, mas isso seria valorizá-lo demais, pois exige premeditação calculada e refinada. Coisa que não percebo em linha alguma. E é um festival de obviedades, de pieguices, de frases feitas… Prefiro ler a coluna do Sérgio. Crítica exige elegância, conhecimento e honestidade.
Por minha insignificante parte, vou me virando com um Antônio Cândido, um Wilson Martins, um Carpeaux, um Merquior, um Sérgio Rodrigues.
Grande abraço.
Sergião: Me parece que o Tabarovsky está ignorando de propósito a excelente narrativa que se escreve hoje na Argentina. Basta pensar em escritores como o nosso xará Sergio Bizzio, no recentemente falecido Fogwill, na veterana Hebe Uhart, no Fabián Casas e em vários outros. Não sei o que ele deseja pra literatura argentina, acho que ele quer vender melhor os livros dele. Esses hermanos são adoráveis, mas podem ser bem complicados… Abração.
Essa questão não me saiu da cabeça, e acho que pode ser um pouco mais complexa do que sugere num primeiro momento. É óbvio que não existe escritor sem leitores, e é fácil bater nesse crítico Tabarovsky porque ele escancara o absurdo da ideia. Eu mesmo fui o primeiro a bater.
Mas e aqueles que se lê muito pouco, numa irrelevância de contingente que tende a zero? Há tempos me incomoda o fato de no Brasil haver um sem-número de escritores que tem uma segunda profissão – o mais adequado talvez fosse dizer uma primeira.
Peguem os escritores jovens considerados os mais promissores e veremos que todos, – mostre-me uma exceção – a depender apenas da venda de seus livros, levariam uma vida franciscana.
Mas não vejo ninguém muito preocupado com isso. Ao contrário, muitos confundem fracasso de público com sucesso de crítica, saciando um fetiche escroto (perdão, mas é escroto mesmo) de soar como mártir literário, cujo hermetismo e insipidez de seus textos são computados na conta do leitor.
E tome noites de autógrafos repletas de amigos e nenhum leitor de fato interessado na obra do autor. E tome tiragens que rondam os dois mil exemplares.
E não me venham com a idéia de que o brasileiro não lê, pois se assim fosse, seria preciso urgente que a PF investigasse essas livrarias que crescem e se multiplicam a cada dia.
É preciso que aqueles que produzem a literatura dita “de qualidade” discutam maneiras de se reconciliar com o grande público e parem de choramingar e praguejar contra as listas de mais vendidos.
Pois se aqueles que vendem são acusados de usar fórmulas rasteiras nos seus livros para atingir interesses comerciais, o mesmo se pode dizer de quem escreve livros que já nascem mirando no gosto de meia dúzia de pessoas que vão atenuar seu fracasso com uma crítica favorável.
Meu Deus! “…que estarei debatendo na próxima…” é f….Não fica a dever nada para telemarketing. Quem pretende escrever artigo sobre literatura não pode atentar assim contra a língua portuguesa, não acha não, Sérgio?
Marcia, estava demorando. Não, a construção está perfeita, você é que foi traída pelo patrulhismo, que frequentemente tenta aplicar ao mundo seus parcos conhecimentos de corrente internética e dá vexame. Ao ouvir o galo cantar, convém saber onde se situa o bicho. Ações continuadas exigem esse gerúndio aí – os debates foram vários ao longo da semana, como é dito na nota. Ficou claro?