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O leitor morreu. Viva o escritor!

22/08/2007

Agora é quase oficial. Há alguma coisa poderosa e ainda pouco estudada corroendo os alicerces da milenar relação entre escritores (poucos) e leitores (muitos, ou pelo menos não tão poucos). Uma tendência que aponta para a mais edênica utopia internética ou a mais louca distopia tragicômica, dependendo do ponto de vista: a transformação de cada leitor-lagarta do mundo em escritor-borboleta. Um escritor-borboleta sem leitores, é claro – por definição.

Lançado o narigão-de-cera, vamos aos fatos. Uma pesquisa feita na Grã-Bretanha (em inglês, acesso livre) pelo instituto YouGov acaba de esbarrar numa descoberta bizarra: o trabalho de escritor é o mais cobiçado pela população. Sim, o mais cobiçado. Cerca de 10% dos entrevistados declararam sonhar com ele em primeiro lugar, quando imaginam uma forma de fugir de suas vidas medíocres. Na lista de preferências, vêm em seguida ídolo esportivo, piloto de avião, astronauta e organizador de eventos (!!). Reparem que astro de cinema não pegou top five.

Sim, todo mundo por lá está dizendo que a gata borralheira J.K. Rowling tem muito a ver com isso. E não, ninguém é ingênuo de acreditar que essa multidão conseguirá transformar seu sonho maluco em realidade – embora uma parte tente mesmo, provocando a multiplicação de oficinas literárias mundo afora. O que me chama a atenção na notícia é a sustentação que ela parece dar a algo de que eu suspeito há algum tempo: tem mais gente por aí sonhando com a glória literária do que lendo. Por quê? Que sentido faz uma coisa dessas?

40 Comentários

  • Rafael Rodrigues 22/08/2007em11:07

    Elementar, meu caro Sérgio! O pior é que antes dava pra dizer “o tempo vai dizer quem fica”. Só que nem isso adianta mais: estão ficando, sendo publicados e lidos quem não deveria estar. Deve ser “o terror” a que se referia Eduardo Marciano e os dois inseparáveis amigos, conterrâneos seus.

  • Renata Miloni 22/08/2007em11:21

    Porque é mais fácil colocar para fora do que aceitar para dentro.

    E até os astros de cinema gostariam de ser escritores. Sei de alguns como o Johnny Depp, por exemplo.

  • Rafael 22/08/2007em11:44

    “(…) tem mais gente por aí sonhando com a glória literária do que lendo.”

    Isto me lembra a piada do cidadão que rezava toda noite para ganhar na loteria, tanto rezou que um dia o Espírito Santo, no tradicional formato de pomba resplandecente, apareceu diante do solicitador, dizendo: “Por insistires tanto, o Senhor irá conceder a ti a graça desejada. Mas, por favor, faça pelo menos uma aposta!”

  • Bemveja 22/08/2007em11:46

    Escrever (livros) é um dos poucos ofícios que geram glamour e respeito entre os britânicos. Na Inglaterra escritores são estrelas. Não surpreende que sejam o sonho sobretudo de mulheres maduras, não é só o caso da JK Rowling– talvez essa tradição se tenha fortalecido pela popularidade e sucesso material durante décadas da Agathe Christie, p. ex, fora casos tipo Daphne Du Maurier et al. Não apenas se lê muito nesse país mas o nível médio de cultura e articulação em geral das pessoas é extraordinário. Assim como a busca por status é tb uma aspiração cotidiana e transparente dos ingleses (ecos aristocráticos).

  • Ministro Temporão 22/08/2007em11:54

    Uma pesquisa revelou que as mulheres britânicas são as que menos lamentam o fato de seus maridos perderem o desejo sexual.

    Na Inglaterra, as camas servem para ler e dormir.

    Eis aí a explicação científica do resultado constatado pelo instituto YouGov.

  • Sibila 22/08/2007em12:00

    sentido nenhum.

  • Cezar Santos 22/08/2007em12:24

    Sérgio, acho que não chega a ser tão surpreendente assim, tratando-se de um país que tem bom nível educacional e de tradição cultural evidente…
    Penso que há uma correlação mais ou menos intrínseca ai,…que acha?

  • Lucas Murtinho 22/08/2007em12:27

    Sérgio, ontem também saiu o resultado de uma pesquisa americana que confirma o outro lado da utopia/distopia: 25% dos americanos adultos não leram nenhum livro ano passado.

    http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2007/08/21/AR2007082101045.html?hpid=sec-education

    Abraços,

    Lucas

  • léo 22/08/2007em13:18

    oi sérgio.

    acho que esse post casa muito bem com o anterior. aliás, pelo o que eu li na caixa de comentários, muita gente só ficou no periférico do texto, o “mundo literário”, e se esqueceu das transformações que pessoas passam quando entram em contato com problemas reais.
    desejo, concessões, vergonha, amor, companherismo em momentos difíceis, enfim. belo texto

  • Mindingo 22/08/2007em14:07

    É muito simples: já que estamos no campo do querer puro e simples, todo o mundo quer ser rei e não súdito.

  • Mindingo 22/08/2007em14:07

    É muito simples: já que estamos no campo do querer puro e simples, todo o mundo quer ser rei e não súdito.

  • Mozzambani 22/08/2007em14:25

    Que bom se o “ofício de leitor” também entre as primeiras preferências, até porque não há como escrever sobre o que não se leu!

  • Simone 22/08/2007em15:15

    O sentido de uma cultura de celebridades em que gostoso é você ser o centro das atenções por uma temporada, e poder se isolar do incômodo mundo o resto do tempo.
    Também os ingleses sabem que são feios, e acham que escritor é uma profissão que poderiam exercer (e na qual poderiam comer alguém) sem depender da beleza.
    Também tem o fator de que quanto menos a pessoa lê, mais baixo é o nível de discernimento dela. Então ela – e seus amigos que têm, provavelmente, as mesmas predisposições que ela -, vai achar tudo o que sai de sua pena genial e originalíssimo. E vai se aproximar de um editor afirmando que o seu livro de minicontos de três linhas é o maior livro do mundo.
    Antes de tentar ser escritor profissional, é preciso achatar bem o ego lendo coisas geniais. Aliás: antes, durante e depois.

  • Jonas 22/08/2007em15:20

    Já falei sobre isso num texto uma vez: parece que os aspirantes não querem ser escritores, mas estar escritores. Participar da FLIP, noite de autógrafo, beber na Mercearia São Pedro, ser amigo do Marcelino Freire (e, como ele, fazer incursões/performances por outras áreas..).

    Mande um deles sentar e escrever, é capaz de você sair com o olho roxo. Escrever para eles é palavrão. Se você critica a pressa em publicar, vão perguntar: “e você quer o que, que eu fique escrevendo?”. A perspectiva de passar anos praticando e se desenvolvendo soa como a mais cruel das torturas. O que importa é estar escritor.

  • Roger 22/08/2007em15:26

    Esse fato não é exclusivo da Grã-Bretanha, aconetece em toda Europa Ocidental e nos Estados Unidos. A gente lê e escreve mais, e as oficinas literárias se multiplicam.

    Um possível motivo eu o deixo aqui, sem ter refletido no assunto. Os escritores viraram pop stars. Não tem mais esse escritor a quem ninguém nunca viu a cara (se lembram dos livros em que não aparecia foto nenhuma?: que bom, não ser influenciado por uma cara arrogante, ou agressiva…, ou bonita! -sei de gente que não lê à Zadie Smith porque, além de escrever tão bem, e ser tão jovem, ela possui essa beleza exótica!). Muito pelo contrário, os editores não querem mais saber de autores que não estejam dispostos a se oferecer como produto em todos os jornais, rádios, TV, cidades do país… O escritor ganhou visibilidade, glamour. Se fala nele como antes num ator de cinema. E isso é o que a gente quer, junto com o dinheiro, claro: não o reconhecimento, mas a fama.

  • velhaco 22/08/2007em15:57

    – Antonio! Há quanto tempo!
    – É mesmo, cara… Desde o ginásio…
    – E aí, o que você tem feito da vida?
    – Ah, eu virei escritor…
    – Sério? Que legal! Maravilha cara! Você sempre foi inteligente! E aí, já vendeu alguma coisa?
    – Já… Até agora vendi a TV, o som, o telefone… Quer comprar um Chevette 78?

  • Pedro David 22/08/2007em19:00

    Não serve pra nada.

    Essa é uma questão que sempre pinta por aqui e há tempos me angustia. Nunca comentei, porque não sabia como expressar direito minha opinião. Agora li uma entrevista com João Moreira Sallles na Baavo que meu ajudou. Ele diz que o cinema não serve pra nada. Entendo melhor agora que essas pessoas que querem ser escritores, músicos e cineastas, e que são muitas na minha geração, não tem consciêmcia disso. Elas querem ser escritorar por alguma razão, provavelmente pela glória de que o Sérgio falou. Querem ser escritores, não querem escrever, e uma coisa é bem diferente da outra. E serve para cieastas, músicos etc. É portando a falta da consciência de que literatura não serve pra nada.

  • Rafael 22/08/2007em19:48

    Diante dos números do mercado livreiro veiculados neste endereço, acho um tanto temerário dizer que a literatura não serve para nada:

    http://www.fonerbooks.com/booksale.htm

  • Pedro David 22/08/2007em19:53

    O.K, então corrigindo:

    Literatura e números não servem pra nada.

  • Márcia 22/08/2007em20:11

    Sem querer pautar seu blog, mas já sugerindo, acho que está na hora de voltar a falar de livros mesmo, análise, comentário, opiniões soltas, enfim… Esse papo de mercado, publicação, se há leitor, se há editor já deu, está ficando repetitivo.

  • Quaquaquá 22/08/2007em22:21

    E os jornalistinhas da web que sonham em ser escritores??? Hein? Hein?

  • Daniel Brazil 22/08/2007em22:45

    Quando era adolescente queria ser um ídolo do rock. Mas quando percebeu que teria de ouvir muitos discos de rock, desistiu.

  • Drex 22/08/2007em23:00

    Sérgio,

    Diante de tudo isso, fico com a proposta do Ludovico, do blogue Dessincronizado: fiquemos todos ao menos 25 anos sem escrever nada, pelo bem da humanidade.

    Pode parecer totalitário, mas não é – você pode ler o que quiser, afinal, e há tanto ainda para ler. Parece drástico mas, pensando bem, não é não 🙂

    Um abraço,

  • Bemveja 23/08/2007em08:00

    Há um segundo elemento nessa vontade de ser escritor: o narcisismo confessional. Na Inglaterra nem tanto, mas na literatura que se faz hoje no Brasil, p.ex., há uma obsessão de falar de si mesmo, e mais: de personalizar fatos e figuras da narrativa.

    Por exemplo: ao descrever um edifício comercial, ou a vizinha, há uma perda de objetividade em nome de um emaranhado de opiniões, idiossincrasias, paranóias fixações e por aí vai: ao invés de dizer que o edifício tem 5 andares e se localiza na rua tal, ou que o vizinha tem 47 anos e é bancária, tudo que essa literatura oferece são opiniões, arengas que nada mais são do que uma forma do escritor falar um pouco mais de si mesmo, com a desculpa de estar descrevendo algo ou narrando uma história.

    Isso limita as possibilidades interpretativas dos leitores, além de ser chato ao extremo, mas esse é, a meu ver, um dos prazeres incofessos de certos escritores, notadamente do mau escritor, que tanto atrai as pessoas: falar de si mesmo. O que nos traz de volta à questão da proximidade entre o que se lê num blog (não neste, que é temático etc) e o que se lê num livro de ficção hoje em dia. Em ambos os casos, é o desejo de expor ao mundo sua personalidade, e ainda ser remunerado por isso. Não há muita diferença entre esse tipo de escritor/blogueiro e quem vai expor suas mazelas conjugais no pgm da Marcia Goldschmidt, p.ex.

  • Bemveja 23/08/2007em08:02

    inconfessos etc

  • Anderson 23/08/2007em10:44

    Eu gostaria de saber qual é o texto literário em que opiniões e idiossincrasias ficam de fora.

  • Bemveja 23/08/2007em10:48

    Anderson, isso é uma falsa dicotomia, não se trata de deixar as opiniões fora, e sim de não afundar o texto com o peso das fixações do autor. Tchekhov, p.ex, cujas obras são sempre character-driven, tinha o talento e a sutileza necessários para não se impor ao texto, não forçar interpretações e permitir que a história tivesse eloquência própria. É uma questão de dosagem.

  • Rafael 23/08/2007em10:51

    Bemveja,

    Não entendi por que você, o ardoroso admirador de James Joyce, mostra tanta repulsa pela obsessão de certos escritores por personalizar fatos e figuras da narrativa. O célebre escritor irlandês, ao colocar sua dear dirty Dublin no centro do seu universo literário, não fez senão levar às últimas conseqüências esse mal que você tanto execra.

    Concordo, é claro, que os que se aventuram a seguir tal estética costumam a produzir o pior tipo de literatura, que é aquela em que o autor, ofuscado pelo próprio ego, pretende fazer de si a medida de todas as coisas. A regra, no entanto, comporta exceções, basta pensar em algumas obras autobiográficas que atingiram o ápice da qualidade artística, como a narrativa de Goethe sobre sua viagem à Itália. James Joyce insere-se no rol dos artistas que souberam usar as referências pessoais mais próximas para construir um universo literário universal (a redundância foi proposital).

    Há narrativas em que a objetividade do autor é tamanha que o leitor fica com a impressão de que o livro foi gerado ex nihilo. As fábulas escritas por Kafka não se passam em nenhum lugar preciso e acontecem num tempo igualmente impreciso, daí o sentimento de estranheza que elas produzem no leitor.

    Como se pode ver, não há receitas certas para a grande literatura. Há sim o talento individual do autor, esse elemento incontrolável e fugaz que nenhum laboratório consegue clonar.

  • Harpia 23/08/2007em10:53

    O resultado da pesquisa não é assim tão surpreendente, dado a relevância que o escrito tem para esta sociedade.
    Desconfio que se esta pesquisa fosse feita no Brasil o resultado seria algo como:
    1-Jogador de Futebol
    2-Ator de Novela (global)
    3-Ex BBB
    4-Funcionário da Petrobras
    5-Funcionário do Banco do Brasil

  • Mr. WRITER 23/08/2007em11:39

    “Quando eu era jovem achava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo, hoje eu tenho certeza.”

    Oscar Wilde

    O pessoal quer ser é famoso, escrever algo bom, legível e que valha algum tostão é uma outra história muito, muitíssimo diferente. Bom mesmo era quando se gostava de ler. Continuo querendo ser leitor, é muito melhor.

  • Brancaleone 23/08/2007em11:59

    Simples:
    O sujeito pega um livro do Paulo Coelho lê umas dez páginas e pensa: Pôrra, isso aqui já lí no Almanaque Pensamento de 1975!! Ou então :- Caráca meu!, isso aqui tá na Seicho no iê e de graça!! como é que eu não pensei em faturar esta grana fácil assim antes!!!
    Este é o problema.
    O cara pode ser uma merda como escritor mas se tiver um bom marqueteiro e uma cambada de gente que acredita que o cara é mágico, mago ou mãe diná ele vende.
    O problema é que a maioria das pessoas até pode pensar em ser assim tão falastrão mas felizmente eles ainda tem princípiose não chegam a extremos.

  • thiago 23/08/2007em13:21

    Já que todos querem escrever, mas poucos querem ler, ficarei na resistência!

  • Claudio Soares 23/08/2007em13:30

    basta ter vontade (e claro algum meio de publicação) e coragem de ser publicado. os motivos de cada um podem ser vários. deixem que os leitores decidam por sua própria conta o que deve e o que não deve ser lido. Fico imaginando como seria se os profissionais de internet (os especialistas, os que implementam o software que usamos aqui, por exemplo) começassem a achar que somente eles teriam legitimidade para criar e manter blogs…

  • Bemveja 23/08/2007em13:54

    Rafael, há uma diferência entre recorrer a gêneros biográficos e/ou fazer uso de experiências pessoais, ambos mecanismos legítimos, e sucumbir a um egocentrismo subjacente em cada linha de texto. Além de uma autobiografia clássica, é possível escrever um roman à clef tipo Fear and Loathing in Las Vegas, um Bildungsroman feito O Encontro Marcado ou o Portrait of the Artist ou até mesmo um livro de pensamentos e observações gerais, feitos os Ensaios do Montaigne. Mas se toda e qualquer produção e gênero literário se acham sobrecarregados pela auto-obsessão do autor, aí há uma redução das possibilidades interpretativas.

    É preciso diferenciar ainda entre o que o Joyce fazia, que é recolher elementos da vida cotidiana e compor uma imagem, do que faz um sujeito obcecado, p.ex. pelo fato de estar na meia-idade, ou de ter um problema familiar, e verter isso tudo de forma incontinente num livro. O único conto parcialmente biográfico do Joyce é o The Dead, que foi inspirado pelos ciúmes provocados nele ao tomar conhecimento de um namorado de juventude da Nora que morreu de tuberculose ou algo assim.

    O livro do Goethe sobre a viagem à Itália, aliás primoroso, é repleto de observações, filtradas pelo conhecimento acumulado e pela capacidade perceptiva do autor (ambas qualidades escassas na literatura do Brasil, à exceção, respectivamente, de um Guimarães Rosa ou de um Euclides da Cunha); não se trata tanto de Goethe falando de Goethe, fora uma ou outra observação sobre cansaço, insegurança sobre os livros que escreveu durante a viagem etc, mas sobretudo de uma atenção exteriorizada, concentrada nas novas sensações que a viagem proporcionou. O livro aliás, é muito discreto com relação a que tipo de sentimentos unia Goethe e seu amigo pintor Tischbein ou a possíveis relacionamentos que o autor possa ter mantido no decorrer da expedição.

    Kafka é um bom exemplo; quando ele quis falar de si e verter no papel sentimentos , escreveu o Carta ao Pai. Nos demais livros, não acho que seja tão deslocalizado assim, o Processo é, essencialmente, situado numa Praga que permanece não-identificada. E os sentimentos, embora se possa associá-los ao Kafka, são descritos com uma economia que os universaliza.

  • Rafael 23/08/2007em16:54

    Bemveja,

    O que significa examente “sucumbir a um egocentrismo subjacente em cada linha do texto”? A fórmula que você emprega é imprecisa e tal fato me faz pensar que sua distinção é artificial.

    A Viagem à Itália é um livro de Goethe falando de Goethe, sim. Trata-se de Goethe falando das impressões que Goethe sentiu enquanto levava a efeito sua jornada; dos sentimentos que lhe suscitou a contemplação das pinturas renascentistas e dos veneráveis monumentos romanos; dos movimentos da sua alma ao espairecer-se na terra onde florescem as laranjeiras. O que o leitor obtém de mais precioso ao ler este livro? Uma descrição pormenorizada dos hábitos dos italianos? Um relato com valor sociológico? Não, nada disso. A coisa mais preciosa desse livro é a rica descrição do estado psicológico, das impressões, dos sentimentos, da sensibilidade de Goethe para a paisagem que se abria diante dos seus olhos. O panorama externo é o de menos; o que vale no livro é a forma como o autor expõe as agitações do seu mundo interior deflagradas pela viagem.

    O Werther é um romance fortemente autobiográfico, apesar de alguns pormenores e do desfecho. Não me parece que essa característica lhe diminua as possibilidades interpretativas.

    Um sujeito na crise de meia idade pode muito bem escrever uma obra-prima que trate especificamente de crise de meia idade. Concedo que, normalmente, esse tipo de literatura resulta num tomo de difícil digestão: afinal de contas, quantos escritores foram dotados com a valiosa sensibilidade de Goethe?

    Talento, Bemveja, o problema é a ausência completa de talento.

  • Bemveja 23/08/2007em17:31

    Rafael, vou partir do princípio de que você tenha lido o livro, mas as Jornadas Italianas contêm pouquíssima auto-análise ou digressões confessionais– uma das diferenças que se estabelecem entre esse livro e outros de não-ficção do Goethe é que ele optou por um distanciamento calculado ao escrever sobre o périplo italiano. Já se tratava de um Goethe adulto, maduro e bem situado no mundo, ele não viajou em busca de si mesmo e sim de novas perspectivas sobre a arte.

    Trata-se quase que de um tratado estético em que Goethe contrasta o estilo, os hábitos e os povos do norte (a Alemanha) e o que ele descobre na Itália. A arte renascentista é um entre vários períodos artísticos que ele aborda; o que interessa mesmo a ele são cópias e relíquias da Antiguidade latina (algumas das quais ele desenha, outras adquire) e as descobertas antropológicas (ele fala muito dos diversos tipos humanos, feito o cavaleiro italiano que diz a ele que “pensar muito enlouquece”, e dos hábitos sociais das cidades por onde passa), biológicas e geológicas (várias descrições de plantas, desde a famosa “planta-mor” que ele buscava até pedras, formações vulcânicas etc). Ou seja, não é uma inner journey dessas que se vulgarizaram por aí; Goethe não é Carlos Castañeda, e sua obra merece se lida com atenção, sem ser banalizada ou jogada num balaio de gatos. Falar de impressões provocadas pela novidade não é falar de si. Esse livro, de modo especial, é intensamente visual e descritivo.

    O mote do Werther é autobiográfico, tal como o The Dead. É inspirado por uma circunstância amorosa específica– no decorrer do livro, ocorre apenas a sublimação ficcional de uma experiência sentimental infeliz que ele teve com uma moça chamada Charlotte, e que no livro tb se chama Charlotte, mas a partir daí é ficção (algo que o final torna especialmente óbvio).

    Finalmente, não se trata só de talento, condição obviamente necessária mas não suficiente p/ quem tenciona escrever um livro em que o tema subjacente seja o estado de espírito do autor: é imprescindível tb experiência, categoria a que o Goethe atribuia a mais alta importância. O excesso de auto-avaliação compromete muitas obras de autores que nem são desprovidos de talento, mas cedem a suas próprias fixações; a seção final do Ravelstein é um exemplo desse tipo de derrapada.

  • Bemveja 23/08/2007em17:37

    só p/ constar: difereNça, é claro…

  • Rafael 24/08/2007em11:46

    Bemveja,

    Li o livro de Goethe há mais de quinze anos. Apesar do vivo interesse que a leitura despertou, muitos detalhes me escapam, pois não tenho a memória prodigiosa de Funes, o memorioso.

    É verdade que Goethe não fica se derramando em confissões pessoais, porém não concordo que o livro seja pobre em auto-análise. Pelo contrário, a obra é uma espécie de tratado de educação sentimental, melhor ainda, de educação da sensibilidade. Mesmo os trechos que tratam de mineralogia importam menos pelo rigor científico na descrição das propriedades dos minérios que pela reação da sensibilidade de Goethe a esses elementos da natureza. É como a famosa Teoria das Cores, menos uma teoria de física, não obstante concebida para impugnar a óptica de Newton, que um valioso estudo de psicologia das sensações humanas provocadas pela visão.

    Quanto ao talento não ser suficiente, pois necessário ter o autor também experiência, concordo plenamente, com um acréscimo: estudo.

    É o velho tripé de que falava Camões nos Lusíadas:

    “Nem me falta na vida honesto estudo,
    Com longa experiência misturado,
    Nem engenho, que aqui vereis presente,
    Cousas que juntas se acham raramente.” (Canto X, 154)

  • Rafael 24/08/2007em11:52

    Um adento:

    “O Processo” passa-se realmente numa Praga fantasmagórica, não identificada pelo nome ou acidentes geográficos, mas sugerida nas entrelinhas.

    Ocorre que falei das fábulas de Kafka, dos pequenos contos, dos apólogos e novelas escritos por ele em vários livros, como “Um Médico Rural”. Neles a geografia e o tempo são indeterminados e indetermináveis.

  • Cássia 25/08/2007em10:28

    Cá do meu lado, sigo lendo. E na Feira do Livro de Porto Alegre integro a minoria dos que não estão lançando livros.

    🙂

    Querer escrever não é problema. Publicar coisa ruim, também não. Creio que só os bons seguem permanecendo. O que me preocupa mesmo são as árvores derrubadas em vão.