Para ser mais ambicioso, só se invadisse o terreno do divino. O diagrama acima busca dividir em tribos e agrupá-las em relação a eixos definidos por pares de valores opostos todos os praticantes de todas as formas de arte que jamais existiram. Ridículo, não? No entanto, depois que se começa a brincar com a idéia, não dá vontade de parar.
Em nome da justiça é preciso esclarecer que o tal diagrama, atração de hoje no blog de livros do “Guardian” (em inglês, acesso gratuito), não se apresenta com a pompa sugerida no parágrafo acima. Foi bolado por Scott McCloud, um estudioso de histórias em quadrinhos, aparentemente em veia lúdica, como instrumento para animar palestras. Mas é impossível olhar para ele sem cair na tentação de catalogar o mundo.
Para melhor apreciar o brinquedo, convém saber que a tribo dos “animistas” é definida como a dos artistas intuitivos, mais ou menos naïfs, que não têm – ou fingem não ter – consciência dos filtros que se interpõem entre a matéria bruta que arrancam das entranhas e o produto final. Aparecem no diagrama como cultores do “conteúdo” não tanto por escolha, mas porque mal enxergam outros valores na arte. Majoritária entre artistas adolescentes, acrescento eu, essa tribo perde representatividade à medida que se avança na escadinha etária.
Quanto às outras três categorias – classicistas (que cultuam acima de tudo a beleza), formalistas (o estilo) e iconoclastas (a verdade) –, sua definição é mais ou menos essa mesmo que você está pensando. O esquema não traz novidade nenhuma, seu charme é a simplicidade.
Mais do que as quatro categorias, o que dá consistência ao jogo são os dois eixos de valores opostos que delimitam seus campos: Arte x Vida e Tradição x Revolução. Quase todas as velhas brigas que, eternamente recicladas, animam os quebra-paus artísticos cabem aí. (Talvez a dicotomia comercial x cult, tão atual, seja uma exceção; nesse diagrama os autores assumidamente comerciais só podem ser classificados entre os animistas, o que parece meio insuficiente.)
Dizer que uma taxonomia desse tipo é chapada e empobrecedora seria dizer o óbvio. Todas são. Mas são também um exercício viciante – basta ver o sucesso feito pela brincadeira maluca de Jayme Ovalle em torno de dantas, onésimos, mozarlescos etc. Desde que não se atribua ao diagrama de McCloud o papel de oráculo, acredito que ele possa ser esclarecedor também, dando maior nitidez a certas tensões que normalmente ficam difusas no debate estético.
Antes que se desencadeie a fúria classificatória, uma ressalva: nenhum artista digno desse nome cabe integralmente em apenas um dos grupos, eis a graça da coisa.
21 Comentários
E como você se considera Sérgio?
Sei lá, Fernando. Ainda não consegui classificar satisfatoriamente quase ninguém, que dirá fazer auto-análise. Estou pensando na forma ideal da mancha de cada autor ou obra, para aplicar sobre o esquema. Começo a me inclinar por uma forma variável de ameba.
Ué, Sérgio. Está em dúvida? Tenho uma sugestão: faça um homem entrar em cena com um revólver…
Pô, Rafael, o assunto mudou. Não leve a mal, mas daqui a pouco o pessoal vai estranhar essa sua fixação em revólveres…
Sérgio, como diria Freud: às vezes, um revólver é só um revólver.
Certo. E outras vezes não é.
Então, sugiro que endossemos, todos, à campanha do desamarmento. Sobre o McCloud: se Rosa Montero nos viu a todos romancistas, porque não acrescentarmos taxonomistas?
*desarmamento
C’est une pipe? Ou um revolver, pô?
E eu achando que o Sandman era uma mistura de iconoclastia com animismo….
Mas o esquema eh interessante. Falando de poesia, tem um esquema parecido a esse no Snow do Orham Pamuk. Mas no fundo esses esquemas sempre me lembram os de um camarada chamado Hayden White, que fez o maior rebulico no fim dos anos 90 ao aplicar seu esquema de tropos de linguagem aos principais teoricos-filosofos-historiadores do seculo XIX (incluindo ai o bigodudo, nitchia, e o barbudo, Carlos Marques).
A minha duvida eh, a panela do esquema do McCloud roda no sentido horario ou anti-horario.
Vendo esse diagrama de McCloud lembrei de “O Jogo das Contas de Vidros” de Hermann Hesse, que sem ser um oráculo e sem nunca ter existido, demonstrava a direta relação da materialidade do espírito com a corrente histórica do pensamento humano.
Enfim, o lúdico que não era real e nem ficção, porém mais ficção do que real, embora às vezes fosse mais real do que ficção!
Algumas considerações: 1. estou tentando lembrar de minha longinquas aulas de biologia, alem de unicelular o que mais fazia de uma ameba ser uma ameba?; 2. Rafael, esqueça os revolveres. Agatha Chritie diziam que eles não serviam para a literatura; 3. Qualquer classificação sobre arte é meramente pedagógica, afinal de contas, quem não desconfiou que havia algo diferente entre Eça de Queiroz e Machado?; 4. usei minha cota de ponto-e-vírgula hoje.
Pseudópodos e reprodução assexuada Fernando?
A Diferença entre Eça e Machado? Deve ser…
Poxa, ninguém quis brincar ainda? Da minha parte, adoro esses diagramas simplificadores, Sérgio 🙂
Vou começar sugerindo algumas coordenadas:
Machado: 70% Arte, 30% Vida / 70% Tradição, 30% Revolução = CLASSICISTA VERSÁTIL
Balzac: 40% Arte, 60% Vida / 80% Tradição, 20% Revolução = ANIMISTA, muito íntimo da beleza também, convenhamos.
Proust: 60% Arte, 40% Vida / 40% Tradição, 60% Revolução = FORMALISTA extremamente versátil.
Kafka: 50% Arte, 50% Vida / 20% Tradição, 80% Revolução = ICONOCLASTA-FORMALISTA, um rebelde com grande estilo.
Borges: 80% Arte, 20% Vida / 80% Tradição, 20% Revolução = CLASSICISTA FORTE
Chuck Palahniuk: 80% Life, 20% Art / 90% Revolution, 10% Tradition = ICONOCLASTA FORTE
Ian McEwan: 60% Arte, 40% Vida / 70% Tradição, 30% Revolução = CLASSICISTA bem chegado à realidade.
E por aí vai… 🙂
Oi, Sérgio,
Desculpa estar escrevendo isso aqui. Queria enviar um e-mail pra você, mas não consegui encontrar o endereço de jeito nenhum. Eu acabei de publicar meu primeiro livro (sim, é possível). Fiz uma noite de lançamento ontem, na Fnac aqui em SP e vou fazer outra na Travessa de Ipanema na próxima terça. Além disso, fiz um blog para contar como foi escrever o primeiro livro, passo a passo, e como está sendo lança-lo. Como sou leitor do seu blog desde a época do NoMínimo, gostaria muito de saber sua opinião sobre o blog e também de enviar o livro para você. Como eu faço? Na verdade, nem precisa publicar este post – a não ser que você queira, claro. Eu só queria achar mesmo uma forma de falar com você. O endereço do blog é este aqui: marcelocostaconde@wordpress.com. Muito obrigado pela atenção. Abraços, Marcelo.
Divertido!
Lembra esse, mesmo raciocínio:
http://www.idelberavelar.com/archives/2008/08/compasso_politico.php
Esse tem um teste, umas perguntas quedepois te encaixam nos eixos. Seria legal se tivesse um teste pra esse das artes também né? De qq modo, vou levar esse eixo dos artistas lá pra Escola de Belas Artes (UFMG) onde eu estudo pra gente ficar classificando os artistas plásticos… 🙂
Marcelo, para o meu email, sergio@todoprosa.com.br, é só clicar na assinatura ao pé de cada post, ou mp meu nome na coluna da esquerda, ao lado da foto. Parabéns pelo lançamento e boa sorte com o livro.
Um abraço,
Sérgio
PQ. será que sempre aparece alguém querendo classificar, enumerar, listar?
A arte só está sujeita à fases, dependendo do estágio em que se encontra.
Picasso: 60% arte; 40% vida; 80% revolução; 20% tradição. Será? Daria um FORMALISTA versátil, não?
Rodin: 30% arte; 70% vida; 60% revolução; 40% tradição. ICONOCLASTA
Basquiat: 20% arte; 80% vida; 90% revoluçao; 10% tradição. ICONOCLASTA radical
Bispo do Rosário: 100% vida; 100% revolução. Mais ICONOCLASTA que Duchamp, além de tudo era doido pobre e preto.
Enfim, é uma bobagem mesmo ficar classificando… 😛
Gosto muito do McCloud. O li quando ainda queria fazer hqs e etc, e mesmo quando a vontade passou, continuei lendo. Raro quando da gosto de ler o teórico. Quando à oposição entre comercial x cult num duelo econômico, eu acredito que se encaixa no eixo art x life. A necessidade comercial é uma preocupação de termos práticos, ou seja, life.