Minha recente experiência como jurado de um concurso nacional de contos rendeu há cerca de um mês a formulação, aqui no blog, do Princípio da Incerteza de Rodrigues. Achei que ficaria nisso, mas estava enganado. Da exaustiva tarefa de ler mais de 900 contos em dois meses pode-se destilar também um alerta que me parece útil a aprendizes do ofício literário: cuidado com histórias que começam com o personagem abrindo os olhos em sua cama de manhã.
Por quê? Acaso será impossível escrever algo bom com esse início? Claro que não, como prova “A metamorfose” de Kafka. Mas aqui não estamos tratando da exceção – que, no caso, é notável justamente pela brutalidade com que estilhaça o clichezão do despertar antes mesmo do fim da frase, por meio do “inseto monstruoso” – mas de uma regra. Uma regra ridiculamente difundida.
Deve-se evitar que a narrativa comece com o personagem abrindo os olhos em sua cama porque, em primeiro lugar, narrativas desse tipo são legião – e que escritor quer se confundir desde a primeira linha com o tumulto indiferenciado do mundo?
Não é só isso. Na grande maioria das vezes, fica evidente que não há uma boa razão para que o autor opte por esse tipo de abertura: trata-se apenas de um cacoete, uma das manifestações preferidas da velha crença de que se deve “começar pelo começo”. O personagem abre o olho porque acaba de nascer, só isso.
Jogado bruscamente no mundo, é comum que pisque atordoado, pensando: Onde estou? Quem sou? Na verdade, qualquer leitor menos ingênuo percebe que quem fala aí é o autor. É ele que está perdido, é ele que não sabe onde o personagem está e quem o personagem é. Acontece com todo mundo, claro, mas é melhor descobrir essas coisas antes de iniciar o conto e não à medida que se escreve, ao preço de torrar a paciência do leitor.
Após o nascimento/despertar, ocorre então um destes dois desenvolvimentos:
1. O personagem se lembra finalmente, em geral ao fim de um bom punhado de parágrafos e após o café da manhã, de quem é e onde está. Algum tipo de conflito se esboça então, e o conto enfim começa de fato – mas, neste caso, de que serviu o preâmbulo matinal? Não teria sido melhor encontrar o personagem in medias res, isto é, ali pela hora do almoço?
2. O personagem continua perdido, passando da confusão do sono para a confusão de uma vida sem sentido – neste caso, podemos ter certeza de que ele conseguiu acordar, mas o autor não.
8 Comentários
haha. Belos toques, Sérgio. Quantos desses personagens acordarem e descobriram que estavam mortos? Depois vc tem que exibir umas estatísticas.
Abraço
“Deve-se evitar que a narrativa comece com o personagem abrindo os olhos em sua cama porque”
Dogma bobo.
Só uma dúvida: para ser um dogma a frase não deveria começar com “É proibido…”?
Gostaria de entender: por que pessoas que não optam por clichês ao ler, o fazem quando escrevem ? Acontece, aliás, em quase todas as artes…
“Abriu os olhos” no caso dos contos. Mas nos romances, o cacoete soberano é descrever o tempo, o clima, a paisagem, etc.
Putz! Acho que já cometi esse erro… rs
Adamastor despertou. Abriu os olhos com certa preguiça. Executou o comum gesto de esfregá-los ambos levemente com as costas dos dedos – era bem de manhãzinha. Melhorada a acuidade, pode verificar no relógio: quinze para as seis. Como ele tivesse uma obsessão de só levantar-se precisamente as 05:57 e 33 segundos ( o rádio-relógio era programado para despertar fatalmente nesse horário) pensou, com regozijo: “Ah! ainda posso dormir mais um pouquinho!” Dormiu. Acordou quase duas horas depois. – Meu deus, atrasei-me de novo! Com que cara vou cumprimentar o patrão… – que a esta hora deve estar consultando o relógio, indignado e nervoso com meu relapso ( o quinto do mês), e pensando seriamente que o melhor seria me substituir de uma vez por todas. O diabo é que, quando me atraso, ele vai me esperar irremediavelmente à porta de entrada – desse modo, ele é a primeira figura que vejo por lá. Logo ele! Às vezes acontece dele estar tão colérico, que não consegue dirigir um simples “Bom dia!” Então ele me fita com um olhar repreensivo, e parece que ele não vai se conter nas ofensas, que vai me dizer tudo que até então estava entalado. Subindo as escadas, eu ainda sinto os olhos dele – pesados nas minhas costas. Então, ele se vinga, no dia do atraso, sobrecarregando-me com trabalhos penosos, trabalhos que parecem ter sido inventados por ele, naquela ocasião, apenas para minha desgraça. O pior é que eu não sei se ele é ruim, ou eu que sou ruim para ele. Isto me perturba.
Adamastor tinha chegado na última esquina. A poucos metros dali se encontrava o velho sobrado no qual ele trabalhava. “Carvalho Contabilidade”. O estranho era que não se encontrava lá, na porta, a figura austera do velho Carvalho. Adamastor, no seu afã e perturbação, não pode julgar se aquilo era bom ou ruim. Subiu as escadas, já sentia o cheiro quase repulsivo, comum aos ambientes de trabalho, agora pisava macio (tinha uma pequena esperança de que o patrão por algum motivo não estivesse por lá), ali estava a porta da sua saleta de trabalho. Ali tinha a velha mesa sobre a qual ele se debruçava no expediente do dia. Às vezes ele tinha a impressão de que, não fosse ela, com sua madeira velha e resistente, ele não conseguiria chegar ao fim de mais um dia de trabalho. Mas aquela mesma mesa, de forma inversa, também parecia ter nele seu imprescindível arrimo. Então vinha-lhe uma imagem muito singular, ele imaginava o universo escuro, com suas mil estrelinhas reluzentes, tendo como centro – algo como o sistema solar – uma figura humana e uma mesa, ambos meio curvados, um comprimindo-se contra o outro, num encaixe perfeito, formando quase uma esfera. Aí ele balançava furiosamente a cabeça como a espantar esse pensamento absurdo, considerava depois ser esse também um sintoma fatal de alguma doença da mente. Mas naquele dia Adamastor abrira a porta da sala dele. E encontrara uma figura jovial que, ao vê-lo, erguendo a cabeça, deu apenas um sorriso rápido, meio indiferente, como se estivesse cumprindo um ritual e como se fossem velhos conhecidos. O jovem preenchia lacunas de documentos, batendo furiosamente na máquina de calcular, e ainda mostrava habilidade em segurar uma caneta na mesma mão ocupada com os dígitos. Tudo isso se passava sobre a velha mesa do Adamastor – que parecia olhar para ele, com ar de quem diz “sou inocente!” e se desculpa ao mesmo tempo. Ou “agora somos eu e ele, adeus!” Na frente da mesa em que se sentava o novo funcionário, um pouco deslocado para a direita, estava o patrão, seus olhos brilhavam, um brilho quase tresloucado de prazer, olhava para o atrasado, e este jurava ver no seu olhar e nos seus trejeitos algo de loucura. Com o dedo indicador da mão direita, rijo, inexorável espetando o ar, ele apontava para o jovem sentado à mesa, ao mesmo tempo que olhava desvairado para Adamastor. Este tentava se convencer a si mesmo de aquilo era um pesadelo, ele ainda dormia, atrasado… Seu Carvalho, alguns anos depois, revivendo em memória aquela manhã triunfante, teve a certeza de que, naquele dia, ele experimentara a maior sensação de prazer da sua vida.
“Desperta ó tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e Cristo te iluminará.”
Está lá pelo meio do capítulo 5 de Efésios. E com esta brigaiada Egito Libia etc, seria bom que os cristãos se levantassem.