A primeira referência que encontrei à autonomia dos personagens literários me impressionou muito. Era adolescente, começava a tentar pôr de pé o plano insensato de um dia escrever livros e fiquei boquiaberto ao descobrir que um escritor podia se declarar impotente diante do livre-arbítrio manifestado por criaturas que ele próprio tinha criado. Como assim – então não era o autor que mandava? A revelação constava de um dos prefácios que Erico Verissimo, meu primeiro ídolo literário, havia escrito para suas (ainda incompletas) obras completas, coleção de capa dura azul que ocupava lugar de honra na estante lá de casa. Não demorou para que meu estranhamento desse lugar a uma profunda reverência diante do supremo mistério da criação.
Não registrei na memória o momento exato em que mudei de ideia, mas lembro-me de, poucos anos mais tarde, abrir um sorrisinho sarcástico toda vez que esbarrava – e esbarrava o tempo todo – num artigo ou entrevista em que um escritor evocava o supremo mistério da criação, alegando que seus personagens só faziam o que bem entendiam e tal. Pô, aqueles caras pensavam que estavam enganando quem? Tremendo caô, claro. Tentativa canhestra de mitificar e dar caráter quase divino a algo que era apenas fruto de trabalho, esforço, um conjunto de decisões racionais postas no papel. Sem mencionar o fato de que era muito cômodo jogar nas costas do personagem, esse ser fantasmagórico, uma responsabilidade – política, ética – que era do escritor e de mais ninguém.
Demorou um pouco para que eu, escrevendo, reescrevendo, quebrando a cara, tentando outra vez, começasse a entender que aquela história de autonomia dos personagens nada tinha de papo furado – embora se prestasse, sim, a diversas estratégias de romantização do fazer literário, um miasma que parece inerente ao meio – e que as razões disso não são esotéricas, mas perfeitamente sensatas e explicáveis. Sendo assim, tentarei explicá-las.
A discussão sobre o que vem a ser exatamente um personagem é longa e animada. Em seu livro “Como funciona a ficção” (Cosac Naify), o crítico James Wood situa os dois extremos entre os quais ela se desenvolve: de um lado a crença excessiva no personagem (cultivada por gente que quer se identificar com eles, que exige que eles se desenvolvam ao longo da história, que sejam “pessoas legais”) e do outro a descrença excessiva no personagem (postura de críticos pós-modernos para quem o personagem não existe, é um mero conjunto de palavras no papel – como se a própria literatura fosse outra coisa).
Wood assume uma posição no meio do caminho. Se não chega a matar a charada do que faz um personagem saltar da página enquanto outro fica deitado lá como se estivesse num caixão, tem o mérito de relativizar o famoso mandamento do romancista E.M. Forster de que, para serem realmente bons, os personagens devem ser “redondos”, tridimensionais, complexos, em vez de caricaturas chapadas e dotadas de apenas um ou dois traços convenientes para fazer avançar a trama. Como lembra Wood, a história da literatura prova que caricaturas podem ser vivíssimas, enquanto certos sujeitos, mesmo meticulosamente esféricos, não conseguem disfarçar o rigor mortis.
De qualquer forma, chapados ou redondos, sensatos ou malucos, realistas ou não, descritos de forma sumária ou exaustiva, o que acabei aprendendo é que os personagens, como todos os elementos de uma composição literária, sempre obedecem antes ao texto que ao autor. Isso parece um sofisma, mas não é. Aquela minha ideia juvenil de que um escritor tem inteira liberdade – e, portanto, controle total – na hora de escrever era, em sua tentativa de combater o romantismo do “personagem autônomo”, também uma noção romântica.
A liberdade total só existe enquanto a página está em branco. A primeira palavra já lhe tira um naco ao sugerir um tom. A segunda e a terceira começam a desenhar uma cena, um ritmo, um páthos. Cada palavra escrita reduz a liberdade autoral um pouco mais, subordinando as que virão à lógica inclemente das que existem até ali. Sim, claro que sempre é possível refazer tudo, voltando à página em branco, mas isso significa recomeçar o jogo e não mudar sua regra. Não se trata tampouco de uma apologia da coerência absoluta ou da caretice narrativa: se a opção for pela incoerência ou pela fragmentação, também elas logo imporão suas leis. A regra é uma só: o texto manda cada vez mais, o autor cada vez menos. Chegando ao ponto final, o escritor não passa de um escravo ou autômato que nada pode fazer além de, justamente, pingar o ponto final.
É nesse sentido que o personagem ganha autonomia. Não por ser uma entidade sobrenatural, uma espécie de “pessoa” de verdade, só que de mentira, capaz de impor sua vontade ao autor. E sim porque o texto ao qual ele deve sua existência demanda que tenha certas ações e certos pensamentos em vez de outros, sob pena de que o edifício inteiro, soando falso, desmorone aos olhos do leitor.
13 Comentários
É isso aí, Sérgio. A coisa fica mais evidente quando o personagem foi baseado numa pessoa conhecida. Na primeira fala do personagem, já começa a distância com a realidade (eta palavrinha).
Sérgio, em entrevista à Paris Review, o Evelyn Waugh também faz uma refutação – bastante simples e engenhosa – sobre essa afirmação do Forster. Como não gosto de me arriscar em traduções, vai no original mesmo:
PR: E. M. Forster has spoken of “flat characters” and “round characters”; if you recognize this distinction, would you agree that you created no “round” characters until ‘A Handful of Dust’?
Waugh: All fictional characters are flat. A writer can give an illusion of depth by giving an apparently stereoscopic view of a character—seeing him from two vantage points; all a writer can do is give more or less information about a character, not information of a different order.
Tem mais aqui: http://www.theparisreview.org/interviews/4537/the-art-of-fiction-no-30-evelyn-waugh
Estes dias pensei muito sobre isso, com meu livro praticamente concluído, acreditei que um personagem não deveria estar onde estava, que poderia ter um momento paralelo a trama, amarguei quase duas semanas de luta para pôr a narrativa nos eixos e as coisas pareciam não querer se encaixar. Não me arrependi por completo, mas varias vezes desejei não tê-lo feito… Abraços.
Ótimo texto, entendo bem o que é isso. A história necessita de uma coerência e os personagens impõe sua personalidade, o que significa que tudo o que acontece durante a narrativa deve esbarrar não apenas nestes dois corredores, sem saltar para fora, mas em muitos outros, como uma sequência lógica e tudo dentro do contexto do enredo… caramba (hehehe). Escreve um livro, primando pela qualidade não é fácil
Se não a mais confiável, a resposta do Nabokov à Paris Review sobre esse tema é a mais genial:
INTERVIEWER
E. M. Forster speaks of his major characters sometimes taking over and dictating the course of his novels. Has this ever been a problem for you, or are you in complete command?
NABOKOV
My knowledge of Mr. Forster’s works is limited to one novel, which I dislike; and anyway, it was not he who fathered that trite little whimsy about characters getting out of hand; it is as old as the quills, although of course one sympathizes with his people if they try to wriggle out of that trip to India or wherever he takes them. My characters are galley slaves.
BAKHTIN E UNAMUNO: FALAS SOBRE O AUTOR E O PERSONAGEM. | João Flávio de Almeida
Nunca havia pensado nessa “autonomia” dos personagens, mas senti que a colocação faz sentido e é, portanto, procedente. Só não saberia explicar como isso acontece. Talvez seja não explicável; talvez não haja o que explicar. É assim e ponto. A mente precisa de explicações, codificações, para se sentir segura. Quando não alcança a compreensão analítica, a mente se perde, flutua no desconhecido, e isso a atemoriza. Deve estar aí o temor à morte: esta é a grande desconhecida, o grande salto.
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Esta aula sobre a independência dos personagens, de alguma forma, remeteu-me a curiosa ocorrência no terreno da Música: tome-se uma partitura de uma composição clássica e peça-se a alguns maestros para reger a obra. A orquestra pode ser a mesma. Mas cada maestro apresentará uma interpretação ligeiramente diferente, com nuances novas.
E isto é muito curioso já que a partitura é a mesma, e, em música, a composição partiturial avizinha-se da precisão matemática.
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Gostei muitíssimo desta aula.
Sim, se nos nossos escrivinhos aleatórios uma palavra puxa outra, uma idéia empurra outra , quanto mais nos escritos decisivos com personagens marcando presença. Deve ser uma loucura querer ir para um lado mas ter que ir para outro, sabendo-se apenas dono do ponto final.
Nos Escritos Bíblicos não houve este problema, pois era soprado pelo Espírito Santo, nos ouvidos dos escritores humanos das mais variadas personalidades. Eles só tinham que obedecer. E os que não foram soprados, mesmo sendo fidedignos à realidade, não foram incluídos no cånon. Bons tempos aqueles….Ah… e não manda eu contar outra não, hein!
Sergio, muito bacana o seu texto. Estive em uma palestra com o Cristovão Tezza há pouco tempo e ele falou exatamente sobre essa “escravidão” do porvir em relação ao que já foi “dito”.
Excelente aula. Para mim, cada personagem de um texto representa uma personalidade completa. Mutilar essa personalidade corresponde a mutilar o próprio texto, e isso o aumento não deve (embora possa)fazer. Daí que, nascido o personagem, o autor não tem como escapar da missão de lhe completar a personalidade. Esta, por sua vez, comandará os comportamentos do personagem e o ciclo fecha-se admiravelmente. Cordialmente.
Que belo texto, Sérgio. Achei a afirmação de Nabokov que o Maurício citou no comentário anterior genial, mas os argumentos que você apresentou são bem consistentes. Pouco a pouco, o autor vai ficando refém da própria lógica por ele criada, e este dilema (mudar ou não mudar, agir em acordo com o que seu personagem quer ou com o que o autor quereria) é o que torna muitos romances irresistíveis.
O personagem faz o que quer porque o texto precisa de coerência interna e nesse sentido ele vai ganhando “autonomia” só isso. O personagem que de repente deixasse de ser o que é seria ridicularizado até dentro do próprio texto.