Ninguém pode acusar Cristovão Tezza de cair nas armadilhas populistas do sucesso. Com o romance autobiográfico “O filho eterno”, de 2007, o escritor paranaense nascido em Santa Catarina – até então considerado um nome “difícil”, do tipo que a crítica elogia e a grande massa leitora evita – explodiu.
Relato sensível mas inclemente das agruras de um pai para aceitar seu filho com síndrome de Down, o livro pulou o cercadinho onde se reúnem em gueto os poucos milhares de consumidores da literatura brasileira dita séria: virou best-seller, mas sem abrir mão do prestígio crítico que o levou a ganhar todos os prêmios literários mais importantes do país, proeza rara numa sociedade precariamente letrada e que se habituou a ver a lista dos romances mais vendidos loteada por sobrenomes como Green e Brown.
Quem passou a esperar de Tezza o golpe baixo do “novo ‘O filho eterno’”, porém, tem se decepcionado desde então. Ainda bem.
“O professor” (Record; 240 páginas; 32 reais) eleva a aposta do autor em sua literatura realista, historicamente enraizada, mas antinaturalista e rigorosa. Consciente da insuficiência irremediável da própria linguagem que lhe dá corpo, a prosa do romance parece querer desdobrar uma frase de “O espírito da prosa”, defesa ensaística da ficção realista que Tezza lançou em 2012:
Fazer um personagem se levantar da poltrona, dar cinco passos inseguros através de uma sala na penumbra, e, com medo, abrir uma porta, não é jamais um trabalho simples.
No presente da narração, é pouco mais do que isso que faz o catedrático de filologia românica Heliseu da Motta e Silva, 70 anos, viúvo e solitário, na manhã em que acorda, toma café, entra no chuveiro e se veste para ir à universidade, onde receberá a homenagem dos colegas por uma “carreira exemplar”.
Nesse breve período, enquanto tenta matutar um discurso de agradecimento, Heliseu puxa da memória uma série de fios: a morte da mãe e a suspeita de que o pai a tenha matado; o casamento infeliz com Mônica; a relação ruim com o filho gay; a paixão por sua orientanda Therèze; a hostilidade dos colegas num meio acadêmico medíocre; o amor pela formação do português medieval e em especial pela “queda das consoantes intervocálicas”, processo que transformou, por exemplo, luna em “lua”.
Referências ao passado recente do Brasil e do mundo desenham uma moldura histórica que chega a ser brutalmente atual (a presidente Dilma Rousseff, definida como “um bloco de anacolutos”, é acusada pelo professor de comandar o “pior governo brasileiro dos últimos 30 anos”) e contrasta com a inatualidade que Heliseu carrega até no nome.
Com esses fios, cada vez menos desconexos, Tezza tece com vagar, sutileza e precisão uma tapeçaria cheia de desalento sobre o tema recorrente da queda – a das consoantes, a de diversos personagens e a do próprio país. Ao fim da leitura é difícil resistir ao trocadilho com o título: um livro de mestre.
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Resenha publicada na edição de VEJA que está nas bancas.
15 Comentários
Que bom, resenha de livro nacional.
Mas Sério, será que para poder escrever na Veja são necessárias essas piscadelas (a Dilma, na presente resenha; vários outros comentários em “O que Machado viu primeiro”)para o leitor típico da revista?
Eu não sou chegado nela, leio aqui porque me interesso por literatura. Aí acho, por todo contexto, meio deselegante esse tipo de coisa.
Delair, acho engraçado (a menos que eu tomasse como ofensa, mas isso prefiro não fazer) você falar em “piscadela” para “poder escrever” aqui ou ali. Felizmente nunca precisei disso. O que sai nesta coluna, como sempre, é o meu ponto de vista. Deduzo que seja diferente do seu, o que é do jogo: embora possa ser doloroso, reconhecer que nem todo mundo pensa igual é condição para ingressar na vida adulta. Mas discordância é uma coisa, desrespeito é outra. “Leitor típico” ou não, lê quem quer.
Não foi a intenção desrespeitar. Pelo contrário.
O fato de eu continuar lendo já é indício de que aprecio a coluna.
Acho que, na verdade, tu entendeu o que eu quis dizer (o ler quem quer não cola).
De qualquer forma, obrigado por responder, Sérgio.
Claro que entendi o que você quis dizer, Delair. Tanto que respondi. Aqui nunca vai ter “piscadela” para o “leitor típico” ou nenhum outro. É só isso. Fico contente de saber que continuará lendo a coluna.
Eu não vi piscadinha nenhuma, até porque fui assinante de Veja por anos, e parei porque ficou muito cara, não porque toda a esquerda odeia a revista, mas sou grandinha e posso decidir por mim mesma o que leio. Já sobre a resenha, Sérgio, achei que ficou assim assim com relação à qualidade do livro, mas vou comprá-lo e ler pra tirar minha dúvida – e também porque acho o Tezza um ótimo escritor. Grande abraço, Clara
“Assim assim”, Clara? “Um livro de mestre” não é enfático o bastante? Compre sim, é ótimo.
Hehehehe. Mas se eu vou comprar e (espero) ler o livro é porque mesmo assim assim você escreve tão bem que cumpre uma das funções da resenha – fazer o leitor curioso sobre o livro em questão. grande abraço, clara
Bacana Sérgio, é impressão minha ou este livro parte de um mote muito parecido com o filme do Bergman: Morangos Silvestres?
Ataliba, o ponto de partida tem mesmo a ver com o filme do Bergman. O desenvolvimento é bem diferente.
Delair como você foi deselegante, seu viés de esquerda o impediu de notar a sua falta de jeito.
Ataliba, meu viés de esquerda me impediu de notar a minha falta de jeito? De fato, a esquerda é composta apenas e exclusivamente por broncos (só faltou rogar a eleminação dessa raça).
Olá Sergio! Gostei de sua resenha sobre o livro, mas gostaria de dividir com você uma impressão e ,quem sabe, ouvir sua opinião. Sou um grande fã do Tezza, mas ao terminar de ler o livro fiquei com a impressão que uma escrita tão interessante e sofisticada talvez merecesse um cuidado maior no enredo. Afinal, a vida de Heliseu teria continuado por muitos e muitos anos ainda após a morte da esposa e o fim do caso com Thereze. E não teria acontecido nada que merecesse alguma reflexão nessas duas décadas? O personagem em uma das falas/pensamentos soltos mesmo comenta que após a morte da mulher, estaria solteiro, praticamente sem filho, ainda jovem, enfim. Ficou pra mim esse buraco…o que acha meu caro Sergio? Um grande abraço
Não senti falta disso, W.Filho. A falta de talento de Heliseu para construir uma vida é flagrante.
Engraçado. Acabo de ler o livro (ótimo), mas não vi esse trecho sobre a Dilma…
Engraçado mesmo, Marcel. Talvez você leia pulando umas partes?