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O que a canonização de Franzen diz sobre a literatura atual

27/05/2011

A revalorização da ficção como arte narrativa por excelência, em ligação direta com a tradição romanesca do século 19, parece ser o pano de fundo para o curioso fenômeno de canonização do escritor americano Jonathan Franzen, um tsunami que varreu o mundo ano passado, quando ele publicou o romance Freedom, e que agora vem inundar a costa brasileira com a previsibilidade dos maremotos a pretexto do lançamento de “Liberdade” (Companhia das Letras, tradução de Sergio Flaksman, 608 páginas, R$ 46,50).

O livro é bom? É. Maravilhoso? Longe disso. Em contraste com a maioria da humanidade, não me encantei com ele e expliquei minhas razões aqui, sob o título Freedom: Obama no conteúdo, Bush na forma, pouco depois do lançamento americano. Vejo até algo de cômico num superlativo como “o livro do século” que o sério “The Guardian” pespegou no tijolo: se o epíteto abrange o século inteiro, trata-se de uma leviandade; se a ideia é falar do século até agora, decorrido um décimo dele, o correto seria usar uma medida de tempo mais sóbria.

Fica evidente, porém, que elogios desse tamanho vão além de questões menores como coerência numérica. Méritos literários à parte, o que o hype franzeniano parece indicar, de uma perspectiva da sociologia da leitura, é uma vigorosa tomada de posição dos meios de comunicação de massa – em aparente comunhão com o público leitor, que transformou o romance em best-seller – num debate que, surdo ou estridente, vem rolando há alguns anos e que pode ser condensado em duas perguntas:

1. A literatura séria, isto é, artisticamente ambiciosa, ainda tem algo a dizer ao mundo?

2. Se tem, qual é a corrente estética mais bem aparelhada para dar conta da tarefa?

A resposta do hype franzeniano é firme:

1. Tem!

2. A ficção revivalista que retoma o legado de Tolstoi, superando tanto o sarampo das “experiências de linguagem” modernistas quanto a catapora da metalinguagem pós-modernista, que alienaram grande parte do público leitor ao longo do século 20, e investindo em histórias realistas carnudas, boas de ler, de preferência longas, com personagens esféricos situados em contextos histórico-sociais bem definidos.

Caretice, dirão alguns. Mas descartar tal postura como conservadora me parece, a esta altura da história, não só fácil como inconsistente: se pagar tributo à rica narrativa de Tolstoi – como faz Franzen explícita e imodestamente em “Liberdade” – é uma prova de conservadorismo, cultuar o espírito vanguardista da primeira metade do século 20, ideal eterno de muitos críticos, também é. Um dos problemas enfrentados pela literatura neste início de terceiro milênio é que tudo já tem uma tradição. Sendo assim, é honesto que cada um escolha a sua ascendência de modo explícito, sem fingir que está inventando a roda.

Por outro lado, antes de dar crédito aos arautos do esgotamento da literatura, convém considerar que existe uma grande diferença entre revivalismo e conservadorismo. Atualizar tradições e fazê-las dialogar com o presente – no caso de Franzen, mais no plano factual do que no da linguagem – sempre provoca novos atritos e jamais terá os mesmos efeitos do “original”. As letras vivem disso há milênios, salvas de crises sucessivas pelo fato de linguagens desgastadas existirem para que escritores de talento as revalorizem. Machado de Assis recuou mais de cem anos para retomar certos truques de Laurence Sterne e antecipar para a literatura brasileira o século 20 (e talvez o 21 também?).

Meu incômodo com o franzenismo é de outra ordem. A enfática fulanização do argumento estético que sustenta esse circo pode dar ao leitor desavisado duas impressões erradas: a de que não há outros cultores contemporâneos da boa arte narrativa e a de que o único modo de cultuá-la é aquele, de uma grandiloquência aparentada do realismo muralista, que Jonathan Franzen emprega.

Nascido em 1959, o autor de “As correções” – este sim, um livraço – pertence à boa geração americana de David Foster Wallace, Michael Chabon, Chuck Palahniuk e Jeffrey Eugenides. Cada um a seu modo, todos são grandes narradores. DFW é mais tortuoso e mergulhado na linguagem, Palahniuk e Chabon dão mais atenção à cultura pop, Eugenides é provavelmente o prosador mais fino da turma. No capítulo painelzão-social-bom-de-ler, pelo menos dois romances dessa geração – “Incríveis aventuras de Kavalier & Clay”, de Chabon, e “Middlesex”, de Eugenides – me parecem mais bem realizados do que “Liberdade”.

Feitas essas ponderações, é bacana ver um escritor sério receber tanta atenção midiática. Com um pouco de sorte, a consagração de Franzen pode contribuir – é a minha torcida pessoal, o meu partido nessa guerra – para uma revalorização crítica da arte narrativa e dos jogos de linguagem aplicados, em oposição ao conceitualismo cabeçudo e aos jogos de linguagem puros. E quem sabe para a retomada, pela tal “grande literatura”, daquelas multidões de leitores que se mudaram para as terras encantadas da fantasia, do policial, dos best-sellers de fórmula, onde ninguém pede desculpas por contar histórias irresistíveis.

7 Comentários

  • Rogerio Moraes 27/05/2011em14:36

    Eu sou um dos encantados com o Liberdade, Sérgio. Mas estou longe de considerar que o Franzen seja o único autor sério, que somente ele escreva livros relevantes. Considero o McEwan superior a ele (se bem que esse tipo de comparação é meio besta). Creio que o Liberdade terá um lugar especial na história do romance americano, mas isso é bem diferente de considerá-lo a coisa mais fantástica que existe. Isso fica por conta do hype mesmo. É como aquele monte de jornalistas dizendo que os discos do Artic Monkeys eram os melhores da história do rock, sendo que qualquer disquinho do The Jam os colocavam no saco. Gostei muito do seu texto, ao meu ver, melhor do que o anterior sobre o mesmo livro. Dessa vez você deu uma chance “ao outro lado”. O que me interessa no Franzen são os seus livros. O circo que a mídia faz deles pouco me importa. Entre outros companheiros de geração também há o Rick Moody, Jonathan Lethem e Jonathan Safran Foer (é uma geração de Jonathans). Sem contar o Michael Cunningham, talvez o meu favorito dessa galera que você citou, que não é tão citado e se não fosse pela adaptação do As Horas seria menos conhecido ainda. Também admiro muito o Kavalier & Clay. O Middlesex não li, mas pelo que você disse darei uma chance em breve. Abraço e parabéns pelo texto instigante.

  • Rafael 27/05/2011em15:56

    Sérgio,

    O “ninguém pede desculpas por contar histórias irresistíveis” fez meu dia.

    Vale

  • Rogério de Moraes 27/05/2011em23:56

    Sempre desconfio de muito oba oba. Como nunca li o autor, pensei em comprar esse Liberdade, mas vou na sua dica e começar por As Correções. De qualquer forma, vibro quando leio pensamentos críticos equilibrados como o seu. Menos oba oba e mais análise centrada. Abraços.

  • Ernani Ssó 29/05/2011em09:26

    Falou e disse.

  • clara 30/05/2011em10:43

    Não conheço o autor, e não posso colocá-lo na fila agora, mas sua frase merece estar como epígrafe em qualquer ensaio sobre literatura hoje:
    “Um dos problemas enfrentados pela literatura neste início de terceiro milênio é que tudo já tem uma tradição”. Fato irrecorrível, todos que escrevem precisam lidar com ele sem apelação.
    abraço,
    clara