Em 1881, Machado de Assis publicou na “Gazeta de Notícias” um conto extraordinário chamado Teoria do medalhão, que republicou um ano depois no livro “Papéis avulsos”. Trata-se de um diálogo puro, isto é, sem interferência do narrador, em que um pai zeloso, terminado o jantar em que se comemorou o vigésimo primeiro aniversário de seu filho Janjão, puxa-o de lado para lhe dar conselhos.
O plano do sujeito é transformar o rapagão naquilo que ele mesmo não conseguiu ser, isto é, um “medalhão”, personagem tão venerável quanto oco, capaz de enraizar sua proeminência social na absoluta ausência de ideias originais e determinado a só enfrentar os problemas reais do mundo pela via da platitude, da frase feita, daquilo que dê uma aparência de solução para o que na essência deve permanecer imutável.
A ironia do conto é um pouco mais escancarada do que o habitual em Machado. A “inópia [indigência] mental” que o pai detecta em Janjão assume a forma de elogio, claro, pois é indispensável ao bom medalhão, mas o leitor aprende depressa a inverter todos os sinais do que diz o canalhão.
Num extremo metalinguístico brilhante, o autor leva o pai a proibir expressamente ao rapaz o uso da mesma ironia que encharca o conto, por se tratar, segundo ele, de um recurso retórico “inventado por algum grego da decadência”. Recomenda trocá-lo por “nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca”.
Como é próprio das boas peças de ironia, o riso despertado por Teoria do medalhão é do tipo que machuca. Embora o tal pai não recomende abertamente a roubalheira e o vale-tudo, tenho me lembrado de sua cara-de-pau ao pensar em nossos estádios inacabados, nossos aeroportos indigentes, nossas estatísticas manipuladas, nossa crescente barbárie urbana, nossos discursos oficiais de um otimismo tão falso quanto canhestro.
Como poderia dizer aquele pai: para que ter o trabalho de organizar direito uma Copa do Mundo substantiva, nua e crua, se podemos nos deleitar com a glória adjetiva e metafísica da “Copa das Copas”?
Difícil não ver no medalhão machadiano, mais do que um representante da elite brasileira tipicamente bacharelesca, pomposa, covarde e ridícula do Império, um protótipo da elite brasileira de qualquer época. Abaixo, alguns dos melhores (piores) conselhos do pai:
Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente (…).
Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa (…). Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança.
Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco.
Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim.
Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos. (…) De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal. Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e observações (…). Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso arranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes!
Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante ações heroicas ou custosas é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um ‘Tratado científico da criação dos carneiros’, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus condidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo.
Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o ‘odorífero’ das flores, o ‘anilado’ dos céus, o ‘prestimoso’ dos cidadãos, o ‘noticioso’ e ‘suculento’ dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.
Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou convervador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos (…). Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade. (…) Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.
Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o ‘Príncipe’ de Machiavelli. Vamos dormir.
Assim termina o conto: com um convite ao sono. Mais de um século depois, já passou da hora de acordar.
9 Comentários
A desfaçatez chegou a um nível tal, que já não basta lançarmos mão da obra de Machado. Incluamos Molière com seu atualíssimo Tartufo e a Escola de Mulheres citando dessa última obra: Num imbecil só, há vários juntos.E incluamos também George Owell com A Revoulção do Bichos
http://www.origemedestino.org.br/blog/johannesjanzen/?post=40
“O substantivo é a realidade nua e crua. É o naturalismo do vocabulário”.
Realmente já passou da hora de acordar.
E este link poderia bem estar nos mostrando que há “escritos” que poderiam ser a “Teoria do medalhão” deste século que começa a sair das trevas e começar a trazer alguma luz… algum duscernimento…
Texto inteligente, perfeito.
Jå pensou o Machado vivendo nos tempos atuais onde a ciência avançando desmontaria as teorias velhas e estas sendo escondidas? Que conto extraordinário “de Assis”n?o faria? Expondo as víceras todas assim bem ironicamente… à la machado…
“(…) um “medalhão”, personagem tão venerável quanto oco, capaz de enraizar sua proeminência social na absoluta ausência de ideias originais e determinado a só enfrentar os problemas reais do mundo pela via da platitude, da frase feita, daquilo que dê uma aparência de solução para o que na essência deve permanecer imutável.”: conselho para o Janjão, constatação na Dilma.
Somente o Brasil teve um Machado de Assis. Pena que o país esteja sendo governado por quem está tão abaixo do nível dele.
“O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota” (Nelson Rodrigues). Ao vermos “vaquinha” para pagar penas de criminosos, Dilma destruindo o pouco que havia sido feito, a dilapidação da Petrobrás, a falta de mobilidade urbana, a violência atingindo patamares inacreditáveis, a corrupção endêmica… não é só Machado; Nelson também faz uma baita falta.
E as eleições começaram. Esse post e aquele a respeito da morte de Garcia Márquez são sintomáticos da inflexão editorial do blog em sintonia com o “equilíbrio” e “imparcialidade” da revista. Esse blog parecia um oásis…Pena!
Alexandre, seu comentário é tão leviano que vincula ao clima eleitoral um artigo (sobre García Márquez) que escrevi em 2010! Este blog é o que sempre foi, meu caro: um espaço autoral onde escrevo apenas o que bem entendo. Agora, se “oásis” é aquele lugar onde todo mundo pensa igual a você (ou ao governo, ou a qualquer outro “programa”, eleitoral ou não), acho que até agora andava me lendo com pouca atenção. Aqui vale o que dizia Millôr: livre-pensar é só pensar.