Desconfio das palavras “pessimismo” e “otimismo” – diz Milan Kundera. – Um romance não afirma nada; ele busca e formula questões. Não sei se minha nação vai morrer e não sei qual dos meus personagens tem razão. Eu invento histórias, ponho uma em confronto com a outra, e dessa maneira faço perguntas. A burrice das pessoas vem de elas terem uma resposta para tudo. A sabedoria do romance vem de ele ter uma pergunta para tudo. Quando dom Quixote saiu pelo mundo afora, esse mundo se transformou num mistério diante de seus olhos. É esse o legado que o primeiro romance europeu deixou para toda a história subseqüente do romance. O romancista ensina o leitor a compreender o mundo como uma pergunta. Nessa atitude há sabedoria e tolerância. Num mundo baseado em certezas sacrossantas, o romance morre. O mundo totalitário – seja ele baseado em Marx, no Islã ou em qualquer outra coisa – é um mundo de respostas e não de perguntas. Seja como for, creio que em todo o mundo as pessoas hoje em dia preferem julgar e não compreender, responder e não perguntar, de modo que a voz do romance é difícil de ouvir em meio a toda a tagarelice insensata das certezas humanas.
O luminoso trecho reproduzido acima é a parte final da entrevista que Milan Kundera deu a Philip Roth em 1980 e que faz parte do livro “Entre nós – um escritor e seus colegas falam de trabalho”, recém-lançado aqui pela Companhia das Letras com tradução de Paulo Henriques Britto (176 páginas, R$ 36). É um prazer ver um grande escritor como Roth assumindo o papel quase humilde de entrevistador, ou seja, jornalista, para conversar com pares do gabarito de Kundera, Primo Levi e Isaac Bashevis Singer sobre as agruras e recompensas do ofício que têm em comum – o grande tema unificador do livro, embora a discussão do judaísmo na literatura chegue perto de lhe roubar essa primazia.
Não que Roth seja um jornalista típico. Suas próprias teses, algumas rebuscadas, ficam sempre claras, deixando evidente a maior parte do tempo que estamos diante de uma conversa de iguais mais do que de uma entrevista. Mas a humildade é marcante em diversas passagens, como quando Primo Levi desmonta com um simples “não concordo” as longas digressões de seu interlocutor, e mais ainda na reprodução da crítica pesada de “anti-anti-semitismo patológico” que Mary McCarthy lhe faz por carta – uma crítica que Roth rebate, mas não deixa de registrar integralmente.
E não porque ela, a crítica, tenha sido indolor, como o próprio Roth sugere em outro capítulo, ao narrar seus encontros com Bernard Malamud, escritor judeu da geração imediatamente anterior à sua:
Embora na maioria dessas ocasiões eu e Bern terminássemos falando sobre livros e o trabalho do escritor, um quase nunca mencionava a obra do outro, observando uma regra jamais escrita que rege o comportamento dos romancistas, tal como o de jogadores de times rivais, que compreendem que é impossível ser totalmente sincero por maior que seja o respeito mútuo. Segundo Blake, “a oposição é a verdadeira amizade”, mas embora a frase pareça de um vigor admirável, em particular para aqueles que gostam de discutir, e embora no melhor dos mundos possíveis talvez ela fosse aplicável, em meio aos escritores deste nosso mundo, em que a mistura de suscetibilidade com orgulho pode se tornar muito explosiva, as pessoas se contentam com algo um pouco mais ameno do que a oposição desabrida, senão se torna impossível fazer amigos entre seus pares. Até mesmo os escritores que adoram oposição normalmente não agüentam mais do que a dose que recebem no seu trabalho cotidiano.
Não apenas para escritores, mas para qualquer pessoa envolvida com literatura de forma menos casual, eis um presente de Natal de sucesso garantido.
16 Comentários
Eu quero!
Bom, meus amigos já sabem o que me dar de presente de Natal e/ou aniversário (28/12),
Alô Tibor! Alô Eric!
rsrsrs
Sergio, passagem realmente luminosa. Deixou um gosto de livro imperdível. Acho que aqui não tem quem não queira essa preciosidade.
grande abraço!
No último parágrafo, não seria “qualquer pessoa envolvida na literatura de forma mais casual”. Se não for, desculpe a ignorância.
Abs.
Outro Paulo: é “menos casual” mesmo, no sentido de mais profunda ou profissional.
Dei uma folheada nesse livro anteontem na livraria. Aliás, mais do que uma folheada. Como eu estava fazendo hora, consegui ler bons pedaços. Já encomendei.
Sugerido por voce, o livro deve ser ótimo. Origado pela recomendação.
Quanto ao Milan Kundera, parece-me que ele, não obstante seu talento incrível, é o que chamam de “escritor de uma obra só”. Entenda pela frase acima aquele livro que alçou seu autor no estrelato, apesar do mesmo possuir uma vasta obra literária – no caso do Milan foi A insustentável leveza do ser. O exemplo maior seria Ruan Rulfo, com Pedro Páramo.
O Rulfo não tem exatamente uma “vasta obra literária”. Apenas o Páramo e os contos de Planalto em Chamas…
I trecho de “Entre nós” reproduzido é de fato luminoso. Ninguém vai resistir e eu vou nessa também.
Falando no diabo, alguém já seu último livro, “Indignation”?
E querem saber do que é mais engraçado? A imortalidade, do Kundera, é muito melhor do que o “A insustentável…”!!!
Ok, Sérgio! Depois de fazer o comentário, me dei conta de que estava falando com o autor do “A palavra é…”, e concluí que era muito mais provável que eu estivesse errado rsrsrs
Abs!
Ceguei aqui através do link para notícais sobre Literatura que coloquei em meu blog ” Na pauta ou fora”. Este livro é leitura certa, para mim que escrevo e que tb dou aulas de literatura.
abraço fraterno, Luz!
Tânia Lúcia B. de Barros
Boa dica! Obrigado
Sem querer ser chato, mas Milan Kundera não é autor de uma obra só. Os textos de “A cortina” e os contos de “Risíveis amores” são memoráveis. Diria até sublimes.
Falar que Kundera é autor de uma obra só é de uma ignorância atroz.. Das duas uma (ou as duas): ou não conhece a obra do cara ou não sabe avaliar.
Milan Kundera é um grande escritor não de uma obra isolada mas de todas que escreveu. Ele foi sublime…