Será que o sexo de um autor, além de inscrito em seus genes, também sai impresso na página entre vírgulas e verbos, de forma inconsciente e sem que ele possa fazer nada para evitar?
A discussão, notoriamente inconclusiva, é velhinha, mas acaba de pegar fogo como nunca na Inglaterra. Tudo começou com uma declaração repulsiva dada esta semana por VS Naipaul (foto), prêmio Nobel de Literatura em 2001: a de que não vê nenhuma mulher na história da literatura que possa rivalizar com ele. “Não são minhas iguais”, disse. E, numa tentativa de demonstrar que sua tese não era apenas fruto de um cruzamento teratológico de misoginia com egolatria, acrescentou: “Leio um trecho e, em um parágrafo ou dois, sei se é de uma mulher ou não”.
Hmm, sei. O “Guardian” aproveitou a deixa para bolar um certo “teste Naipaul”, pedindo aos leitores que identifiquem o sexo dos autores de alguns trechos literários. É o que estou imitando descaradamente aqui com quatro autores brasileiros, dois de cada sexo. O resultado sai na semana que vem.
1. Eu disse que ateus e crentes fazem parte do mesmo grupo. Todos acreditam em algo. Todos podem dormir e roncar tranquilos, amparados no estofado de alguma convicção. O teor da certeza não faz a menor diferença. Basta ter certeza e estão todos no mesmo barco. Miseráveis são os que não estão em barco nenhum. Não sei se Deus existe. Não tenho certeza de nada. Vou morrer sem saber. É, vou morrer. Oração universal, imemorial. Morreremos. A palavra que nos une. O único verbo que tenho a humildade de conjugar na primeira pessoa do plural.
2. Um aquário de águas sujas, a noite e a névoa da noite onde eles navegam sem me ver, peixes cegos ignorantes de seu caminho inevitável em direção um ao outro e a mim. Pleno inverno gelado, agosto e madrugada na esquina da loja funerária, eles navegam entre punks, mendigos, neons, prostitutas e gemidos de sintetizador eletrônico – sons, algas, águas – soltos no espaço que separa o bar maldito das trevas do parque, na cidade que não é nem será mais a de um deles. Porque as cidades, como as pessoas ocasionais e os apartamentos alugados, foram feitas para serem abandonadas – reflete, enquanto navega.
3. Lisboa é cheinha de gente e tem muito a ver com o Brasil (que novidade!). Bem, eu digo isso comparando aos outros países, onde você não vê tantos mendigos, tanta desorganização no Correio para telefonar para outras cidades ou o exterior e muito menos a mistura de carros e lojas que há por aqui. Tem DKW dos mais barulhentos, com aquele cheiro de gasolina saindo, ao lado de um Renault novinho em folha. Lembra um pouco Atenas. E aqui você pode distinguir com mais rapidez um homem pertencente à classe burguesa (digo, um capitalista) e um proletário (um operário ou um camponês). Isso sem dúvida, como no Brasil, e diferente do que acontece na França.
4. Evidentemente, o jornal do meu pai foi fechado antes de se transformar em um conglomerado da comunicação. Ao mesmo tempo, as sucursais da Última Hora eram incendiadas em todo o país e a situação ficou complicada para a esquerda. Meu avô entrou em cena e aplicou aquele que tem sido o lema dos Sampaio, desde tempos imemoriais: quando a coisa ficar preta, saia rápido o bastante para não parecer afronta e devagar o suficiente para não caracterizar covardia. De acordo com esta máxima, que vem nos conservando a vida há várias gerações, meu pai foi devidamente escondido em algum lugar de Santa Catarina, de onde voltou três anos depois.
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A votação está encerrada.
28 Comentários
Que legal! Quais os autores do primeiro e terceiro parágrafos?
Pô, Vinicius, se eu disser acaba a brincadeira. Semana que vem sai o resultado.
..o teste é bem revelador da falsidade da questão, não é mesmo, sérgio.. vcparee ter escolhido pelo menos dois (2) textos que trazem ‘estereótipos’ daquilo que se pensa feminino e masculino.. aposto que a grande maioria vai errar, e eu também não escaparei..
abço
..ops, cometi erros de digitação !!
A ideia é essa, Ricardo (o teste ser revelador, não você cometer erros de digitação!). Abraço
votei em homem, mulher, mulher, homem, até agora o mais votado. mais interessante ainda seriam as razões de cada eleitor para suas escolhas.
Interessante o teste Naipaul, Sergio.
A escolha que fiz foi: H,M,M,H porque entendo que os homens quando escrevem são mais profundos (filosofia) e sucintos e as mulheres passeiam pelos detalhes (viscerais). Se bem que existem exceções.
Abraço.
Gosto muito do Naupaul romancista, um escritor monumental com um grande dominio narrativo,capaz de perolas como “Uma Casa para o Sr Biswas” e ” O Enigma da Chegada”( elogiado por Susan Sontag).
Mas o Naipul ensaista é uma lastima escfrevendo sobre politica e cultura!
Não importa o sexo do autor, mas a qualidade dos textos.
O problema são os exemplos. Quando uma instituição como a Academia Brasileira de Letras resolve eleger um grande “escritor” chamado Merval Pereira, todos perdem. Se a ABL resolve eleger por interesses comerciais, comprando votos em troca de apoio na divulgação dos seus membros, perde-se toda a credibilidade.
Jane Austen e V. S. Naipul | Jane Austen em Português
Sérgio,
votei “Mulher, homem, homem, mulher”. Puro chute.
Terminei de ler ‘Não me abandone jamais’ e se não soubesse que quem era o autor, e um trecho do livro fizesse parte de seu teste, eu marcaria como mulher.
Escolhi ao acaso, não concordo com o escritor. Não vejo como identificar o sexo de um escritor a partir da leitura de um texto e, ao meu ver, o teste comprova isso.
mulher, mulher, homem, homem, sem dúvida…
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A primeira, fala de dormir…e RONCAR!
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A segunda, começa falando que a noite parece um AQUÁRIO…
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O terceiro dala de DKW soltando cheiro de GASOLINA
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O quarto fala de não sair devagar demais para não parecer COVARDIA
Retificando: o quarto pode ser uma mulher, pois a frase masculina, alusão ao disfarce de uma eventual covardia, é uma citação do AVÔ (homem)
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E a segunda, a da noite parecida com um aquário, pode ser um homem com “alma feminina” (tipo o petista Chico Buarque, aquele do jabuti automático…aliás, tartaruga não tem sexo, né?…é anfíbio-sexual?)
ih, errei feio!
Hoje em dia é tão difícil saber qual homem é homem e qual mulher é mulher, alegam ter alma de outro sexo, alegam ter nascido em corpo trocado, então, é muito subjetiva essa análise.
Homem, mulher, mulher, homem. No teste Naipaul acertei 4 em 10. Aqui acerto todas!
Tibor: hahahaha.
Oi Sergio,
Homem, Homem, Mulher, Mulher. No primeiro o raciocínio é lógico, no segundo filosófico e nos dois últimos as impressoes permanecem na superficialidade. Tomara que tenha errado. Abs.
Votei só para brincar. mas esse Naipaul, embora, posterior, deve ter nascido do embrião dos buchichos que deram origem à decisão de George Sand. Cuitado.
Nove de dez lá no Guardian. Errei o Nicholas Sparks, que é meio mulherzinha mesmo. Aqui é MHHM. Fácil.
Não consegui votar, fiquei só rindo, pensando na armadilha. E lembrando do Graciliano Ramos, que quando leu “O quinze” disse: “Rachel de Queiroz só pode ser pseudônimo, isso e coisa de sujeito barbudo”. E ela estava com 20 anos quando escreveu o romance rsrsrsrs
isso é (escrevi e)
Essa votação está meio esquisitona.
Em 1º lugar, com 33%, os votos TOTALMENTE AO CONTRÁRIO do correto?
Eu, hein…
A resposta do teste Naipaul: erro goleia com 86% dos votos | Todoprosa - VEJA.com
Sérgio,
Declaração repulsiva? Você não acha o adjetivo meio pesado? Eu não chegaria a tanto. Na minha opinião, o que o Naipaul afirmou tem sentido. O erro dele, no entanto, foi supor que existe perfeita identidade entre o sexo biológico e o sexo da “alma”. Neste aspecto, concordo com a opinião de uma das Academias de Sião, para as quais “umas almas são masculinas, outras femininas. A anomalia que se observa é uma questão de corpos errados”. Há o estilo masculino e o estilo feminino, mas nem sempre quem os cultiva é, respectivamente, o homem e a mulher.
A estupidez do politicamente correto é que nos veda enxergar essas verdades primordiais.
Vale.
Rafael, acho o adjetivo justo, e neste caso não creio que o politicamente correto tenha nada a ver com isso. Se Naipaul dissesse que NINGUÉM na história da literatura está à altura dele seria menos grave – egolatria desvairada, mas pelo menos assumida. Para mim, essa história dos “estilos de gênero” é, no mínimo, controversa demais para justificar uma afirmação desse tipo. Se entrar na conversa a tal de alma, então…
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