Um texto sobre o romance “Esperando Zilanda” ([e] editorial, 2010), bom livro de estreia da escritora carioca Tamara Sender, garantiu a Felipe Charbel o primeiro lugar no I Concurso Todoprosa de Resenhas – Brasil, século 21.
Experiente no ramo, Charbel produziu uma apreciação crítica lapidar em que descrição, interpretação, referências a outras obras e texto apurado se fundem com enganosa facilidade. Para seguir à risca a receita da boa resenha segundo John Updike, só faltou citar um trecho mais encorpado da obra, a fim de que o leitor pudesse julgar por si mesmo o estilo do autor – regrinha que, naturalmente, não é obrigatória e que raros concorrentes seguiram.
Em suas próprias palavras, Charbel “é professor adjunto de Teoria da História na UFRJ e autor do livro ‘Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini’ (Editora da Unicamp, 2010). Foi jurado da Copa de Literatura Brasileira em 2008 e 2009”.
O primeiro colocado ganha um pacote com os seguintes livros: “Mecanismos internos”, de J.M. Coetzee; “O mal de Montano”, de Enrique Vila-Matas; e “Sobrescritos”, de Sérgio Rodrigues. O segundo lugar leva “Borges oral & sete noites”, de Jorge Luis Borges, e “Se um de nós dois morrer”, de Paulo Roberto Pires. O terceiro, “A página assombrada por fantasmas”, de Antônio Xerxenesky.
Obrigado a todos os que participaram do I Concurso Todoprosa de Resenhas. Uma segunda edição não deve demorar.
UM ANTIRROMANCE DE FORMAÇÃO, de Felipe Charbel
“Há histórias magníficas de boicotes a si mesmo.” A frase, que aparece no primeiro capítulo de “Esperando Zilanda”, romance de estreia da carioca Tamara Sender, reverbera como fórmula silenciosa por todo o livro. Estela, a narradora, é alguém que não se sente em casa na própria vida. Debochada, divertida, melancólica e insone, o que mais deseja é ficar no próprio canto, alheia ao mundo, ao Jornal Nacional, aos acontecimentos grandiosos, narrativizando seu cotidiano por e-mail e elaborando listas de palavras felizes – trampolim, lambisgoia, melagrião, treblinka. Recém-casada com Daniel, um jovem jornalista precocemente amadurecido que deseja uma vida tranquila ao lado de uma esposa sorridente e solícita – tudo que Estela jamais será –, e exilada na Tijuca, tradicional bairro de classe média do Rio de Janeiro, Estela não precisa se “empenhar para demonstrar desinteresse”. Simplesmente não quer se envolver.
Seu lugar é o de não participante, o de observadora irônica e remota da realidade. Mas Estela admite a precariedade de sua posição. “Eu sou o mundo inteiro, uma bomba numa caixa de fósforos”, escreve. Filha enfermiça da vida, como o Hans Castorp de “A montanha mágica”, a narradora não tem forças para preservar intacto o casulo de sua hipertrofiada existência interior. Ela é dependente de estímulos externos: remédios e venenos de sua ansiedade. As atividades mais banais da rotina – ir ao supermercado, fazer um bolo, assistir ao noticiário noturno na tevê, declarar o imposto de renda – são para Estela como espelhos a partir dos quais reconhece e aguça seu hiato com o mundo. Ela necessita desses estímulos como alimentos para suas idiossincrasias; ao mesmo tempo, abate-se ao perceber que a realidade não é exatamente um lugar reconfortante para pessoas como ela.
Numa espécie de diário não nomeado, que intercala com e-mails enviados a José, seu leitor e “condutor espiritual”, a narradora estetiza suas experiências mais corriqueiras. E é uma estilista: mesmo quando dá voz a outros personagens, como Daniel, ela recorre a uma charmosa ladainha repleta de resmungos e tiradas certeiras – variações meio histéricas sobre os despropósitos da existência. Pode-se dizer, assim, que em “Esperando Zilanda” a pluralidade das vozes é monocórdica, produto das lentes convexas por meio das quais Estela estranha o mundo. “Estamos na Tijuca”, diz Daniel, “nosso apartamento é alugado. Dois quartos, dependências completas, sol da tarde. Tudo aqui é prosaico. Não há brechas para o terror. Há baratas, formigas, ladrões, falta de luz, latidos de cães, gritos de torcedores, tiros ao longe. Está tudo bem, Estela.”
Avessa a metáforas, Estela nomeia de forma exaustiva os referentes do real – o achocolatado que consome toda manhã, a loja de utensílios domésticos que frequenta, o supermercado que a deprime. Dar nomes é um exercício continuado de autoconvencimento e assimilação, algo como um beliscão em si mesma. Não há espaço, em seu discurso, para as figuras de linguagem grandiloquentes – elas seriam desvios das coisas como são, dispersões inapropriadas do olhar para além do caráter comezinho da vida. O nominalismo de Estela é, inclusive, uma das chaves para a compreensão do título do romance. Isto porque, se a referência a “Esperando Godot” é evidente, não chega a ser autoexplicativa. Conceitos como intertextualidade e paródia, embora válidos, podem turvar a compreensão da espera singular de Estela, seu gesto de imobilismo. Zilanda, a empregada doméstica que vem toda quinta, é para a narradora um marco concreto da passagem do tempo – um tempo cíclico, em que nada de novo acontece. Presa a esse tempo, Estela é incapaz de amadurecer, de se desenvolver psiquicamente, de passar, por exemplo, da vida à literatura. “Esperando Zilanda” é, nesse sentido, um antirromance de formação, em que a estetização da realidade se mostra um fim em si. Estela escreve, mas não fala em se tornar escritora; narra, mas não faz disso ficção. Grávida, recusa-se a assumir o papel de mãe, a nomear o filho, como se dessa forma pudesse negar sua existência. Ao fim, rejeita também a aproximação de José, o único a quem ela assegura voz autônoma em sua jornada particular em torno do próprio umbigo. Agarrando-se à bidimensionalidade, a personagem condena-se à inação.
Graças ao olhar firme e impiedoso de Tamara Sender para as banalidades do cotidiano, a leitura de “Esperando Zilanda” acaba se revelando uma experiência radical de desestabilização do prosaico e desnaturalização do senso comum. O crítico ávido por genealogias talvez obtenha resultados consistentes ao buscar, a partir da epígrafe, imagens delilleanas de domesticidade, ao dialogar com o narrador de “Ruído branco”, ao visitar a obra de ficcionistas contemporâneas como Alice Munro, Margaret Atwood, Rachel Cusk e Jhumpa Lahiri – ou, simplesmente, ao pôr uma cadeira de praia num grande supermercado da Praça Saens Peña, numa tórrida e inconcebível tarde de verão na Tijuca.
21 Comentários
Prezado Sérgio Rodrigues;
Sem saber, você acaba de inaugurar a pedra fundamental do edifício em homenagem a um grupo de escritores, leitores e afins que atendem pelo nome de ÓierBando. Pelo visto, onde pousa o sopro de descontração, com competência, da literatura carioca. Escrevo de longe, atento a tudo isso. Recomendo melhor investigação. Não vai se arrepender.
Caro Refrator, talvez você devesse dividir a piadinha interna com os leitores do blog. Nem todo mundo está no Orkut (!) e muito menos na comunidade Prosa Contemporânea 2.0.
Esperando Zilanda foi um dos melhores livros que li nos últimos tempos e essa resenha está sensacional. Parabéns ao autor (e, por extensão, à autora do livro).
Caro Sergio Rodrigues;
Tivesse eu um salário para falar sobre literatura com freqüência, há muito tempo eu o teria feito. Mas sou só um pobre amador de, entre outras coisas, piadas privadas. Vejo, contudo, que você sabe do que eu estou falando, o que nos habilita a ambos redigir uma nota de rodapé sobre o quase-segredo acerca do ÓierBando e seus componentes. Confesso que adoro segredos de confraria. Você…?
Merecidíssimo, bela resenha.
Uuuuuuaaaaauuuuuu……
Sei menos do que você imagina, ilustre Refrator. Basicamente o que me contou o Google, que não gosta de piadinhas internas. Também não aprecio muito segredos de confraria, para ser franco, embora respeite o seu gosto. Só quando inspiram um Sobrescrito e olhe lá. Se você não se anima, deixemos o tal bando sem nota de rodapé. Registre-se apenas que o fenômeno da “resenha a favor”, sobre livros que o crítico se empenha emocionalmente em divulgar (seja próximo do autor ou não), era previsto e estava presente em, chutando, oitenta por cento dos concorrentes. Afinal, é Brasil século 21, pô. Como o júri saiu dessa? Tentando ler o texto em si, esquecer o resto. E aí a resenha do Charbel ganha com bastante autoridade, não sei se você concorda. Um abraço.
CARA, ESTA DEMAIS ESTA RESENHA.PARABÉNS.PENA QUE NO BRASIL ESTA FORMA DE LITERATURA NÃO CHEGUE A TODOS,SAIMOS DE UM ANALFA E ENTRAMOS NUMA PRESIDENTE ROBOTIZADA,DISCURSOS MARCADOS,PENSAMENTOS VAZIOS.PTZINHOS IGNORANTES.PENSANDO QUE ALGUÉM EM SÃ CONSCIÊNCIA,LUTANDO PARA VENCER NA VIDA, ACREDITANDO EM OITO ANOS DE GOVERNO PT.
1º lugar merecidíssimo! Bom saber que haverá novas edições. Sugestão: que tal variar os formatos do concurso? (mini contos, outro recorte temporal/espacial para os livros a serem resenhados, etc.)Valeu!
Deixei para comentar ao final: e parabenizo ao Sérgio pela iniciativa do Concurso, também aos vencedores, cada qual com sua contribuição – vale pelo exercício do ‘diálogo’, o que sempre é um sopro democrático (salutar para o universo das letras também), e pelo exercício de pensamento e visão crítica para todos que aceitaram o desafio (como este que comenta, não acostumado a resenhas literárias). Foi um prazer participar, escrever, ler e compartilhar pontos de vista. Vale também pelas dicas de leitura. Esperamos, talvez, mais comentários de ‘bastidores’, Sérgio… rs.
Não sei. Não li todas as resenhas. Quem sabe da próxima vez. Já o Charbel, o sujeito rala, é talentoso e bem-humorado. Mas, repito, não li todas as resenhas, não sei do que tratam. Imagino que você saibam o que estão fazendo ao elegê-lo, ainda que tenha certeza não lhe faltarem predicados – especifico, ao Charbel. E, nota: o Google adooooora piadas internas. Ele foi criado, praticamente para isso. Foi assim que ele te propiciou a oportunidade de caminhar em corredores antigos, ainda que tenha parado na entrada. O que o Google não dá é timing de slow science – e essa é uma piada interna da minha cabeça, que há anos não vale grande coisa, ou mesmo quase nada.
Pois é, Refrator, pegou mal com a rapaziada a piadinha interna exteriorizada, paciência. Quando achar que tem uma pauta para mim (em tempo, não tem), recomendo ser menos cifradinho e despeitado (“tivesse eu um salário etc.”), que essas “sacanagens” costumam sair pela culatra. Aliás, você achar que a minha gentileza de convidá-lo a fazer o seu reclame com todas as letras aqui nos comentários do blog é pedir que você faça o meu trabalho por mim, isso sim foi a grande piada da semana. O sucesso do Charbel e do Lamha não merecia essa nota de rodapé.
Culatra? Você me pôs no meu lugar, assumiu o seu e a vida segue. Para mim soa a objetivo cumprido.
(porque pode haver na vida coisas mais importantes do que ser popular.)
Se bem que…
“Pois é, Refrator, pegou mal com a rapaziada a piadinha interna exteriorizada, paciência.”
Seria isto uma remissão a um evento ocorrido no Prosa Contemporânea sem, no entanto fazer a remissão? Seria este um ato falho em que narra algo que lhe é familiar sem, no entanto, facilitar a vida do leitor do blog? Seria isto uma… piada interna? Afinal, quem é a “rapaziada”? E estaria a “rapaziada” ofendida com o que fiz? Irrestritamente? Ou há pormenores não relatados fazendo da “piada interna” algo muito parecido com os desmandos de um certo Refrator de Curvelo – uma versão íntima transformada em ponto de vista de Órion?
Puxa, Refrator, agora você me deixou sem palavras.
Resumindo esse melancólico episódio, aqui do meu ponto de vista: você veio aqui falar numa confraria carioca no dia do resultado final de um concurso organizado por um blog do Rio. Acredito que não tivesse a intenção de desmerecer o prêmio e o premiado, mas tal leitura, para não iniciados, era quase inevitável, apesar de inteiramente falsa. Eu não podia deixá-la borboleteando no ar e fiz a única coisa que me cabia fazer. O resto é coisa de spin doctor. Mas espero que já se possa dar o caso por encerrado.
Fora “treblinka” listada como palavra feliz… Será que Tamara fez mesmo isso? Tremo.
Fiz isso, sim, Noga. Não há por que tremer. Palavra feliz, na lista de Estela, tem a ver com o som, com a materialidade, e não com o conteúdo.
[Por sinal, sou judia, minha mãe escreveu um livro sobre um sobrevivente de Auschwitz, e meus quatro avós são polonesas que imigraram ao Brasil pra fugir da guerra.]
[poloneses, melhor dizendo]
Venho aqui aos 45 do segundo tempo para agradecer ao Sérgio Rodrigues pelo prêmio, e para registrar que a repercussão foi ótima.
Conheço, sim, a Tamara, e pensei nisso antes de escrever a resenha. Mas cheguei a algumas conclusões que me “liberaram” de possíveis restrições (como já comentei na referida comunidade do Orkut, o Prosa Contemporânea 2.0):
1) a natureza do concurso. Por ser um concurso de resenhas, importava menos o livro em si que ter alguma coisa a dizer sobre ele. E acho que tinha alguma a coisa a dizer sobre “Esperando Zilanda”, cabendo ao juri avaliar o mérito da minha leitura.
2) ser próximo da Tamara não me faz um pior ou melhor leitor das suas coisas. Além disso, como sabia de antemão que o Sérgio Rodrigues conhecia o livro, pois ele já havia citado um trecho no Todoprosa, pensei: “se ele achar minha leitura fora de propósito, simplesmente vai me desqualificar”. Esse pensamento me tranquilizou.
3) Não há distância, não há neutralidade, não há suspensão de valores. Ainda assim, é possível tentar ler um livro, independente do autor, mirando a neutralidade como ideal regulatório, mesmo que inatingível. Foi o que tentei fazer. E se não fosse assim, não conseguiria escrever.
4) Por fim, pensei da seguinte forma: por que não falar de um livro que considero bom e que teve pouca atenção da grande midia? Poderia escrever sobre outros livros brasileiros mais recentes que considero ótimos, como “O Paraíso é bem bacana”, “Livro dos Homens”, “O livro dos mandarins”, “Toda terça”, “O filho eterno”, “A arte de produzir efeito sem causa”, algum do Bernardo Carvalho, o próprio “Mãos de Cavalo”, que o Leonardo dissecou com muita propriedade. Mas eles já foram lidos, comentados, debatidos, esmiuçados. Eu teria algo a acrescentar?
Bom, agora é esperar as próximas edições do concurso!
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