Um carro tem defeito no meio do nada, numa estrada deserta na província argentina do Chaco. A bordo dele vão um pastor evangélico itinerante e sua filha adolescente. Rebocados até a oficina de beira de estrada de um mecânico solitário e grosseirão, que vive ali na companhia de um garoto silencioso, também adolescente, e um número indefinido de cachorros, pai e filha terão que esperar que o carro seja consertado para seguir viagem.
Com esses elementos escassos, a escritora argentina Selva Almada compôs a narrativa “O vento que arrasa”, publicada por lá em 2012 e agora lançada no Brasil (Cosac Naify, tradução de Samuel Titan Jr., 128 páginas, R$ 29,90). Recebido com entusiasmo crítico incomum em seu país, o livro foi eleito o melhor lançamento da ficção argentina naquele ano, em votação organizada pela referencial editora e livraria Eterna Cadencia, e sai aqui com orelha empolgada da crítica Beatriz Sarlo, que o chama de “romance surpreendente” de “uma narradora original”.
Em primeiro lugar, será preciso corrigir a classificação de “O vento que arrasa” como romance. Trata-se sem dúvida alguma de uma novela, ainda que generosamente engordada pelo papel robusto (Pólen Bold 90) e pelas dimensões da mancha gráfica. Essa correção pode parecer um preciosismo, apego excessivo a uma nomenclatura que nada significa. Não creio que seja isso.
“O vento que arrasa” é uma boa novela realista que tira sua força justamente da adequação da história a tal moldura. Não se trata apenas da extensão, mas também da ação comprimida em menos de 24 horas, do número exíguo de personagens e da ligeireza com que a voz narrativa em terceira pessoa esboça cada um deles, dos mais bem acabados – o reverendo Pearson e sobretudo o mecânico Gringo Brauer – aos mais esquemáticos e incipientes, os jovens Leni e Tapioca.
Quando recorre aos flashbacks para contar em pinceladas rápidas a história de cada um deles (todos irmanados por algum tipo de desamparo ou orfandade na infância ou na juventude), a voz, que no primeiro capítulo limitava-se a descrever com destreza a superfície da cena, penetra por fim na cabeça de cada um, como a música que entra o tempo todo pelos fones na cabeça de Leni. Até um cachorro, Baio, recebe tal tratamento perto do fim do livro, conduzindo a narrativa por três páginas.
A alternância de pontos de vista tem papel estruturante, mas não é na interioridade dos personagens que reside o interesse de “O vento que arrasa”. O maior mérito de Selva Almada é, com a leveza ao mesmo tempo certeira e borrada de uma aquarelista, criar cenas carregadas de atmosfera em torno desses quatro, que são mais tipos do que indivíduos. Algumas dessas cenas são belas e chegam a cortejar a pura epifania, efeito literário que costuma se sentir mais à vontade em contos e novelas do que em romances. É o que ocorre, por exemplo, na cena do súbito, gratuito espírito comunitário que baixa sobre o heterogêneo quarteto quando chega uma tempestade.
Os quatro ergueram o rosto para o céu. Não havia nada melhor a fazer naquela altura.
Quanto tempo durou? Vá saber. Foi um momento único e completo, quando todos foram um só. A garrafa passou de mão em mão até se esvaziar. Leni até deu um beijo no pai, sem que ele se opusesse.
É a escassez de elementos mobilizados pela autora, sua habilidade de sugerir mais do que conta, que leva sua singela história realista a tangenciar – sem jamais adentrar – o território da alegoria e do mito. É também o que nos faz atravessar as poucas horas de leitura de “O vento que arrasa” sob uma nuvem cada vez mais carregada de apreensão, quase de medo, à espera da catarse violenta que o título espertamente promete. Descobrir se a promessa chega a se cumprir é uma tarefa prazerosa que deixo para o leitor.
2 Comentários
Ô xará, esse livro é uma beleza, assim como os outros da Selva Almada (ela tem mais uma novela, um livro de contos e um de crônica-reportagem publicados). Tanta coisa boa sendo publicada na Argentina, né? Abração!
Salve, xará, tudo bem? Achei bem legal, mas não espetacular. Grande abraço.
Que bom uma nova resenha sua, SR. Um abraço.