Enquanto o livro não vem, e para não fugir do assunto de ontem, reedito um Sobrescrito publicado em fevereiro do ano passado:
Conheceram-se na oficina de ficção coordenada por um escritor de barba espessa e fama rala. O que primeiro chamou a atenção dela foi a qualidade do diálogo que ele conseguia escrever, vozes se cruzando com uma espontaneidade e um fio inacessíveis a ela, aos outros alunos e talvez até, quem sabe, ao professor. Já a atenção dele foi despertada primeiro por aquele olhar, o olhar morno e lento que ela ficava revezando entre ele e seus próprios pés, como se seu pudor viesse em ondas, enquanto o ouvia ler em voz alta o diálogo habilmente plagiado do Sabino. Foi depois desse dia, a princípio num espírito de retribuição mas logo com curiosidade genuína, que ele expandiu sua atenção dos olhos para o texto, e não demorou a se impressionar com a força dos adjetivos luxuriantes que ela espalhava aqui e ali numa narrativa de resto seca, feito plantas carnívoras de estufa em vasos perdidos no deserto. Não é incomum, especialmente em ambientes artificiais como o de uma oficina de ficção, que metáforas ganhem vida: ele logo descobriu que estava projetando no corpo dela, sardento e quebradiço nos trechos que o decote e a saia deixavam entrever, a expectativa de uma vegetação sumosa escondida em dobras propícias. O diálogo, quando chegou a hora do diálogo, foi banalíssimo, vamos jantar, vamos, vamos para minha casa, vamos, o que a decepcionou um pouco, mas a essa altura seus olhares já tinham se cruzado tantas vezes, enquanto o professor dissecava algum conto mal-ajambrado e reduzia a pó mais um aluno infeliz, que a narrativa tinha que se desenrolar até aquele final, um final sem adjetivo luxuriante nenhum, apenas este: previsível, um final previsível. Na semana seguinte ele abandonou a oficina de ficção sem nem se despedir. Poucos dias depois ela começou a namorar o escritor de barba espessa e fama rala, com quem acabou se casando.
8 Comentários
Valeu Sérgio.Esse é para ser lido ao som de “Eduardo e Mônica”, na voz do Renato Russo, de preferencia.
Sérgio, para não fugir muito do assunto, dê uma olhada no artigo do Tibor Moricz http://esooutroblogue.wordpress.com/2009/09/09/um-esparrame-de-coletaneas-nelas-se-alimentam-os-rodapes/#comments
Teste de resposta…rsrs… o Todoprosa está passando por uma wordpressada?
Muito bom!
Sérgio,
You are so mean!
grande texto.
Humor finíssimo!
legal!