Algumas questões parecem voar no ar dos tempos. O “Rascunho” que começou a circular nos últimos dias (ainda indisponível online) traz uma longa entrevista comigo em que, entre outros assuntos, o editor Rogério Pereira lança o da eterna dúvida sobre a eficiência das oficinas de criação literária na formação de escritores. Por coincidência, e guardadas algumas proporções, a mesma questão anima um ótimo artigo da “New Yorker” (em inglês, acesso gratuito) publicado ontem pelo crítico Louis Menand.
Vamos primeiro à pergunta do Rogério, seguida da minha resposta:
Há uma grande quantidade de oficinas de criação literária espalhadas pelo país. O senhor acredita na capacidade destas na “formação” de escritores?
Nenhum curso ou oficina jamais vai transformar um não-escritor em escritor, mas pode – nos casos de não-picaretagem, naturalmente, e para isso é preciso pesquisar bem o mercado antes de fazer a matrícula – ajudar a lapidar talentos, além de propiciar uma convivência com seus pares que seja muito produtiva. Por que não? Num esquema mais profissional e institucionalizado, os cursos de creative writing nos EUA podem se gabar de ter algumas estrelas entre seus ex-alunos, como Michael Chabon. No Brasil, ficaram quase lendárias as oficinas de Assis Brasil no Sul, por onde passaram escritores como Michel Laub e Cintia Moscovich, entre outros.
Se a dúvida central é a mesma – “pode-se ensinar alguém a escrever literatura?” – o caso brasileiro e o americano são pouco comparáveis. Ainda menos do que eu imaginava ao responder ao “Rascunho”, antes de ler o texto de Menand. Citando Michael Chabon de memória como exemplo de autor formado num curso de creative writing, eu ignorava que Raymond Carver e Joyce Carol Oates, entre muitos outros, estivessem na mesma situação. Informa Menand que só o curso da Universidade de Iowa, o mais prestigioso do país, ostenta 16 ganhadores do Pulitzer entre seus ex-alunos.
O tamanho que a máquina universitária de formação de escritores ganhou nos EUA é algo muito distante de nossa realidade. Aqui as oficinas literárias, embora venham pipocando em cada esquina nos últimos anos, crescem à margem da universidade e conservam um certo ar de improvisação. O que talvez não seja de todo indesejável. Como aponta o artigo da “New Yorker”, a grande contradição dos programas de creative writing vem exatamente de transformar em instituição (inclusive com a concessão de um pomposo diploma ao fim do curso) aquilo que, por natureza, não é intitucionalizável. A relação de amor e ódio que tantos professores desses programas nutrem com eles parece brotar daí.
Por outro lado, trata-se sem dúvida de uma das formas mais honestas à disposição dos escritores para transformar em ganha-pão seu desvalorizado saber. Desde que o jogo seja limpo e não se prometa a ninguém o que simplesmente não se pode prometer – a fabricação de talento onde não houver nenhum.
21 Comentários
Sérgio, o prof. Stephen Koch, que lecionou por mais 20 anos sobre a arte da ficção em Princeton e Columbia (trabalhou com J. C. Oates), tem uma opinião bastante pragmática a respeito do tema. Diz que muita gente inteligente, adepta da crença de que “escrever não se aprende na escola” jamais esperaria que um pianista, um pintor, um diretor de cinema etc descobrisse sozinho (por magia?) tudo, absolutamente tudo, sobre a sua profissão, os fundamentos que lhes serão necessários no exercício da técnica. Ora, por que se deveria exigir algo diferente de um escritor?
Acho cursos e oficinas importantes. Vocação existe em qualquer profissão. Ferramentas idem. Se há faculdades de medicina, arquitetura, matemática, física, farmácia, psicologia, cinema, artes plásticas, etc., todas elas com cursos de temas variados orbitando ao redor, … por que não pode haver o mesmo na literatura? O que eu aprendi no Instituto Brasileiro de Audiovisual é um ativo que levarei para sempre. Dessacralizar e profissionalizar.
Abss!
Não sou escritor nem tenho a intenção de ser escritor. Não obstante, posso confessar que o pouco domínio que alcancei na arte de escrever adquiri após um longo e doloroso esforço de esquecimento: o esquecimento de todas as lições que recebi do meu querido professor de língua portuguesa e, sobretudo, do meu estimado professor de redação.
Acredito na oficina literária – a séria. Mas somente para quem já tem uma certa bagagem em leituras. As oficinas podem ajudar no desenvolvimento de personagens, na descrição do tempo e espaço na narrativa. Ou seja, concordo com o Sérgio: ajuda na lapidação.
quanto a mim, gostei mais da parte em que a gente transforma em ganha-pão nosso desvalorizado saber, será que a oficina ajuda mesmo nisso? ou o scribd/kindle pode ajudar mais? (ah, liguem não, é depressão pré-parto de livro novo), falar nisso segue convite aos leitores do Todoprosa se o Sérgio der licença: Bloomsday na DaConde do Rio, Conde Bernadotte, 19 hs, espero vcs lá.
Eu acredito que a convivência com profissionais experientes e conscientes da realização artesanal de sua arte pode somar em muito ao iniciante. Isto se nele existir o talento. Caso contrário será perda de tempo. As oficinas ajudam porque diminuem o trajeto do iniciante, dando a este uma visão mais direta sobre os processos de criação. Tudo isso ele descobriri sozinho, caso realmente existisse uma vocação, mas na convivência com escritores experientes pode exercitar mais rápido este direito
Ainda acredito que a arte literária se aprende no autodidatismo. Muita leitura. Muita reflexão. Muito exercício de imitação.
Mas só pouquíssimos dos que se arriscam nesse caminho conseguirão dominar todas as técnicas e se tornar, de fato, escritores. Literatura não é medicina.
O José Castello, em entrevista ao PONTOLIT, disse (explicando porque preferia chamar suas oficinas de “Oficinas da Imaginação” e não “Oficinas Literárias”) : “Oficinas literárias pretendem ensinar a escrever. Minhas oficinas não pretendem isso, até porque acredito que isso não se ensina. Ninguém forma um escritor, só ele mesmo se forma e se autoriza. Não há transmissão, há no máximo provocação”.
Se há talento, as escolas servem para alguma coisa. Se não há, é pura perda de tempo. Existe uma penca de gente por aí achando que é escritor. Nenhuma oficina vai lapidar o que não há para ser lapidado.
Acredito a oficina literária séria e, sobre tudo, no auto didatismo.
não acredito que alguém sem vocação literária vá se matricular em uma oficina. Importante é a vocação, o restante surge naturalmente, na sequência de leituras e buscas. Nesse aspecto as oficinas são bem vindas por ajudarem, sim, a lapidar e reorientar o que está “confuso”. Se a oficina é “picareta” ou não, o vocacionado logo descobrirá e para outra irá (rimou né? rs rs rs). Não são contra os meios que os “messias” devem se levantar, mas contra falta de um programa público de incentivo a leitura nas escolas. Precisamos de leitores. Desesperadamente.
O primeiro comentário traz um truísmo interessante. O artista escritor não é melhor que nenhum outro artista – como o músico – de modo que não seria razoável exigir dele que nascesse sabendo toda a técnica de sua profissão/arte. Só que o lugar onde se aprende o seu instrumental se chama “aula de português” (no nosso caso), como o lugar onde se aprende piano se chama “conservatório”.
Ensinar “escrita criativa” (a pretensão parece, no fundo, ser ensinar a produzir “arte literária”) a quem sabe os rudimentos da língua, é o mesmo que ensinar “arte pianística” a um profissional do piano. Interpretação e expressão, no entanto, não se ensinam; por isso precisamos dos escritores e da comunicação de suas personalidades por meio do papel.
E de mais a mais, o exemplo americano não me parece muito pertinente: lá, eles que são tão “narrow minded”, dão valor a qualquer aprimoramento funcional, trazendo com isso implícita a idéia de que “tudo é ensinável”, ou seja, “tudo é técnica”. Pega-se então um punhado de garotos instruídos e um Kurt Vonnegut os ensina a forjar algum estilo, chama-lhes a atenção para outras possibilidades de narrativa, cita-lhes novos autores, abre-lhes a mente para novos pensamentos. Aí algum desses alunos se esmera, ganha um prêmio com a bem escrita estória da morte de um garoto no Mississipi e pronto, já se redimiu o famigerado curso para escritores, como algo factível. A arte reduzida a técnica reproduzível
No dia em que criarem um curso “Como tocar violino como Paganini” que seja realmente eficaz, nesse dia eu acreditarei que a expressão individual e a arte podem ser ensinados. Até lá, acreditarei que apenas rudimentos se ensinam, e que o resto é desafio individual, que mal e mal (e raramente) se transforma em êxito. Do contrário, bons escritores não escreveriam maus livros de vez em quando (eles têm a técnica, right?).
A grande questão não é saber quantos escritores algumas oficinas literárias formarão, mas quantos elas deformarão. Já imaginou certos escritores e críticos “ensinando” pro Cormac McCarthy: Não use tantas conjunções “e”; pro Saramago: Use direito a pontuação; pro Guimarães Rosa: Não invente tantas palavras (isso sem entrar no mérito da criação de personagens).
A graça da Literatura são as idiossincrasias.
Só pra constar, o Ian McEwan se formou em Creative Writing em Oxford. Considerando que ele é, talvez, o maior escritor de língua inglesa vivo, fica difícil falar que esses cursos são uma besteira. Mas, ao mesmo tempo, ele entrou no curso porque já tinha vocação.
Concordo com o Mario. Uma oficina literária pode, sim, deformar; mas não sou generalista a ponto de acreditar que todas fazem isso. Uma oficina pode orientar, respeitando a originalidade e o estilo de cada aluno. Para alguém que gosta de escrever e se sente perdido, ou sente que precisa de dicas de leitura e da avaliação do que já sabe a fim de se aprimorar, acho as oficinas válidas. Daí a ensinar a escrever é outra coisa. Uma oficina pode aprimorar técnicas, fazer com que os alunos tomem contato com estilos diferentes daqueles aos quais estão habituados; e nisso há enriquecimento, há aprendizado. e aprendizado nunca fez mal a ninguém.
Sérgio, se não me engano a PUC aqui do Rio Grande do Sul agora tem um curso universitário de escrita criativa, que nasceu a partir das oficinas do Assis Brasil.
Abraço pra ti – e quando é que tu vens a Porto Alegre?
Nada que uns bons anos de estudo e de leitura não ajudem…
Acho profundamente estimulante este debate em torno das oficinas literárias. Mas é preciso esclarecer um ponto com objetividade: nenhum orientador quer ensinar a escrever romance, no sentido rigoroso da expressão. O que se deseja é debater, refletir, questionar a ficção. Não existem regras, mas sugestões, análises, problemas. Não existe nenhuma possibilidade, ainda a mais remota que seja, de fórmulas prontas e acabadas. Em geral, toma-se um livro, um conto, uma novela para debate e aí vão surgindo os caminhos. É isso. Estudar e ler, ler muito, ler tudo, e depois estudar, e em seguida ler. Quem tem mais experiência, quem escreveu e publicou mais de dez livros, tem, no mínimo, o que dizer, o que expor, o que refletir. Não, ninguém quer mudar o eixo da terra. Quer que o romance, por exemplo, seja matéria de reflexão. Com a maior sinceridade. Com a paixão que conduz o escritor. É só isso.
Sérgio, parabéns pelo debate sincero e leal. É sempre necessário dizer que uma Oficina não é casa de bruxo ou de feiticeiro. É um lugar de debates, de relexões, de análises. De absoluto respeito à criação. É isso que deve ser levado em conta. Sempre. Abs de Raimundo Carrero
Eu tenho uma pergunta sincera. A ultima frase do post (“Desde que o jogo seja limpo e não se prometa a ninguém o que simplesmente não se pode prometer – a fabricação de talento onde não houver nenhum.”) me deixou com a pulga atras da orelha. A pergunta é: como identificar e definir o talento? Creio que todos possuem suas idéias (preconceitos?) sobre o que é talento, mas como saber. Quando eu era criança (seis, sete anos), eu escrevia “estorias” (uma pagina) e vendia para familiares por um dinheirinho, que eu usava para comprar figurinhas. Falava que queria ser escritor (fui parar na Fisica Teorica…). Em algum momento, essa chama sumiu um pouco, talvez por eu ter convencido a mim mesmo de que nao tinha talento. Mas sera que nao tinha mesmo? Ou sera que, por achar que talento quereria dizer sentar e escrever uma cronica em meia-hora, me desestimulei com o escreve-odeiaoqueescreve-rasgaecomeçadenovo-riscametadeecomeçaoutravez-….?
Deixando a divagaçao de lado, volto a pergunta. Como saber se vale a pena se lançar nesse tipo de coisa, como saber o que é o talento?
Abraços.
PS. Desculpem a falta de alguns acentos. Teclado francês…
Bom texto. As oficinas não deformam, pelo contrário, ajudam bastante ao escritor a encontrar seu próprio caminho e podem poupar um tempo danado de “autodidatismo”.