O romance “Tigre de papel” (Cosac Naify, tradução de José Bento Ferreira, 286 páginas, preço a definir), que chegará às livrarias no fim deste mês, é o passaporte do escritor e editor francês Olivier Rolin para a Festa Literária Internacional de Parati – onde ele estará dia 11 de agosto, ao lado do peruano Alonso Cueto e do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil, na mesa “Prosa, política e história”. Trata-se de um belo passaporte. Estruturado como uma caudalosa falação de Martin, que foi militante maoísta na Paris de 1968, para a filha de Treize, um correligionário já morto, “Tigre de papel” é o acerto de contas de Rolin, nascido em 1947, com seu próprio passado politicamente ativo naquele tempo e lugar – ambos lendários. É também uma tentativa de traduzir as motivações da geração 68 para a jovem que o escuta e, com intervenções esparsas mas precisas, ajuda a evitar que o relato descambe para o puro saudosismo melancólico. Se este resumo apressado deu a entender que “Tigre de papel” é um romance pesado, denso, cabeçudo – ou seja, “francês” no mau sentido –, esqueça o resumo. Ambicioso, o livro tem uma verborragia atropelada e suja que o situa bem longe da estante de leituras ligeiras, mas é muito divertido. Lançado com grande repercussão na França em 2002 e finalista do prêmio Goncourt (que não ganhou), evita qualquer traço de chatice com lucidez e humor. Como diz Fernando Gabeira na orelha, “o narrador de ‘Tigre de papel’ critica o presente que nos envolve sem deixar de revelar com precisão o desvario dos construtores da História e, com especial humor, as relações com os burocratas chineses”. O trecho abaixo tem um pouco de cada uma dessas qualidades:
O Angelo na época estava em hypokhâgne(1), você explica à filha do Treize, ele era o líder dos secundaristas da Causa. Com sua tropa, ele interrompia os professores com gozações ou imprecações, conforme o estado de espírito, passeavam pelados pelos corredores, escondiam bichos fedorentos nas salas de administração, respondiam com bombas caseiras às observações dos supervisores, organizavam, nos dias de sol, verdadeiros banhos nos tanques do pátio interno, convidavam piranhas para as aulas de filosofia, criaram numa sala de aula uma “prisão do povo” onde pretendiam encarcerar supostos fascistas – em resumo, se divertiam pra valer. Instituíram um concurso de novos coquetéis, com júri presidido pelo Nessim. Era o que se chamava de “revolta anti-autoritária”. E quem são esses caras, Angelo, Nessim?, pergunta a filha do Treize. Você não sabe contar uma história, mistura tudo. Pelo contrário, mocinha, o imbróglio faz parte da história. O Angelo e o Nessim e todos os outros, a gente chega lá. Só falta dar mais algumas voltinhas. Os professores daquela época não estavam acostumados com essas diatribes, alguns deles tiveram ataques cardíacos. Depois com certeza ficaram mais durões. Aperfeiçoamento da espécie.
O pai do Angelo, um pied-noir de origem espanhola, foi da Resistência, foi membro do Partido Comunista, depois da OAS, a mãe dele era uma italiana cujas convicções anarquistas não se desembaraçaram por completo de um catolicismo ferrenho, enfim, na hereditariedade dele havia a propensão para um extremismo desordenado. Num ano – pode ter sido 1970 – vocês o enviaram a Pequim como delegado, para algum daqueles congressos em que emissários de grupelhos uruguaios, belgas e até franceses supostamente representavam o apoio dos povos do mundo à linha chinesa contra a linha soviética. Depois de discursos intermináveis, todos esses figurantes eram reunidos em escadinha, atrás de uma comissão de frente de dignatários com pijamas mao, cada um brandindo o “pequeno livro vermelho” (abreviação: PLV) fazendo seu sorriso mais idiota e clique! Tirava-se uma foto que apareceria com a legenda “temos amigos no mundo inteiro” em A China em Construção. Os mestres da China-vermelha-para-sempre não gostavam da Causa (ou melhor, os burocratas que cuidavam desses assuntos subalternos em algum canto da Cidade Proibida): viam nela um monte de irresponsáveis anarquizantes, capazes de perturbar os negócios deles com a França do presidente Pompe (2). E não ia ser a missão diplomática do Angelo que os faria mudar de idéia. Começaram por mandá-lo à força para o barbeiro, acharam o cabelo dele comprido demais. Por mais que o Angelo tenha protestado, não devem ter dado ouvidos. Depois, diante do marechal Lin Piao, o sucessor do momento, ele detalhou o plano que tinha concebido de estabelecer no perímetro Saint-Jacques–Soufflot–Sainte-Geneviève–Saint-Germain uma Comuna insurrecional de universitários e secundaristas defendida com armas. É santo que não acaba mais, observou com razão o marechal, com sua cabeça de criado de comédia que poucos anos mais tarde seria desintegrada no céu mongol. Por fim levaram o Angelo, numa delegação de “amigos ocidentais”, diante do Sol Vermelho em carne e osso: enfiado no linho cáqui, os pezinhos calçados de verniz negro cruzados entre os dragões de casuarina de seu trono, o déspota verruguento levava à boca, com a mãozinha rosada, como se estivesse cozida, e que tanto impressionou Malraux, indefectíveis cigarros de filtro amarelo. Com a outra mão ele remexia languidamente a braguilha. O velho Minotauro decerto tinha acabado de fazer as honras a uma das colegiais que mandava trazer. No momento em que a delegação entrou naquela sala que, conforme o Angelo te contaria mais tarde, lembrava mais um grande restaurante chinês de Belleville que um lugar feito para o poder, soaram os acentos estridentes do “Oriente Vermelho”: Dong-fan-ang hong, tai-yan-ang sheng… “O Oriente é vermelho, nasce o sol…”. Foi demais: tomado de emoção, Angelo perdeu os sentidos.
1. Hypokhâgne: Curso preparatório para a École Normale Supérieure, uma das grandes écoles do sistema universitário francês.
2. Presidente Pompe: Apelido que o autor dá a Georges Pompidou, presidente da França entre 1969 e 74.
2 Comentários
Mesmo olhando assim em parodia, dói ainda que “O sonho acabou; e Quem não dormiu no sleeping-bag nem sequer sonhou”…
toujours mai de 68… le rêve est devenu cauchemar lorsqu’on voit pas la jeunesse du XXIème siècle, mais toute sa société, notre société. pour cela, il faut, plus que jamais, de nouvelles stratégies de lutte et de résistance (et aussi une nouvelle utopie, une nouvelle 68, mais tout à fait différente!).