A palavra ortografia vem do grego orthós + grápho, isto é, o modo correto de escrever. Quem determina que modo é esse sempre foi uma questão polêmica. Na tradição luso-brasileira, o papel tem sido desempenhado por legisladores, respaldados por comissões de sábios. É o que ocorre mais uma vez na atual reforma ortográfica.
Um dos argumentos mais correntes contra o acordo – o de que ele é condenável por mexer apenas no modo de escrever as palavras, deixando de lado as divergências sintáticas e semânticas entre Brasil e Portugal – lembra a desculpa do capitão que negligencia a manutenção de seu navio porque não pode controlar o oceano. A não ser nos delírios de ditadores caricatos, o poder dos governantes sobre sintaxe e semântica é zero: não há o que eles possam fazer. Sobre a ortografia, verniz da língua, há.
Se deveriam se meter nessa seara é outro debate. Na definição da ortografia, o poeta português Fernando Pessoa preferia o método da lenta decantação cultural ao das canetadas legislativas, o que o levou a se insurgir contra uma das reformas de espírito “simplificador” pelas quais o português passou. Em suas palavras, “um acto que, à parte ser desnecessário, ou, pelo menos, não urgente, foi abrir uma cisão cultural entre nós e o Brasil”.
É justamente essa cisão, que resistiu a outros decretos ortográficos desde Pessoa, que o acordo – decepcionante sob certos aspectos, como costuma ocorrer com o fruto do trabalho de comissões – procura combater. O abismo cultural não sumirá por milagre, mas a parte dele que corresponde ao modo de grafar vocábulos ficará reduzida a alguns casos de dupla grafia – nada muito diferente do que ocorre no inglês. Os portugueses aboliram o trema em 1946. Nós o aboliremos agora. É pouco, mas é um sinal de aproximação onde vinha prevalecendo o distanciamento.
Publicado na “Revista da Semana”.
7 Comentários
Pelo que andei vendo por aí, os que mais chiaram contra o acordo foram os escritores portugueses; mas quando finalmente li o texto completo do acordo, vi que haverá mais mudanças na ortografia do Brasil que na de Portugal.
É meio esquisito, confesso, escrever as palavras que mudaram, mas depois de algum tempo ninguém vai se lembrar da forma antiga e poderão concluir (caso se recordem dele) que o acordo não foi uma inutilidade, uma violência, um AI-5 contra a língua, como escreveu um de nossos melhores autores.
Em 1971, muita gente reclamou da mudança feita aqui no Brasil, mas quem se lembra de como se escrevia antes dela? Ninguém morreu, ninguém foi para a prisão, nenhuma vocação literária foi tolhida pelos acentos que desapareceram naquele ano.
Então, é aceitar o acordo e deixar de frescura.
Sérgio,
Isto não é uma crítica nem tomada de posição. É uma dúvida sincera. Tenho visto que você tem defendido o acordo, de uns tempos pra cá. As observações sempre giram em torno da questão da aproximação entre os países. Eis a dúvida: a aproximação que você vê com bons olhos seria, no caso específico desse acordo, uma aproximação simbólica, certo?
Pergunto pelo seguinte: nada do que está previsto no acordo facilita, de fato, a compreensão mútua. Todo mundo sabe que “contacto” é “contato” – não tem necessidade de tirar uma letra pra gente descobrir. Então, essa mudança não elimina barreira nenhuma, simplesmente pelo fato de que a ortografia, por diferente que seja, não é uma barreira. Nesse sentido, na hipótese de se saber que qualquer reparo na nau será absolutamente inútil para o fim de fazê-la atravessar os mares bravios, investir tempo e dinheiro no conserto parece mesmo pouco recomendável. Não é o caso com as embarcações, mas pode ser o caso com a língua (e eis que as metáforas, advertia Locke, podem ser enganadoras).
Se é assim – eis a minha dúvida sincera -, o que você é um movimento simbólico de aproximação, o esforço ou desejo recíproco de união?
Não se trata apenas de símbolo, Diogo. A ortografia é uma barreira concreta e intransponível para a circulação de livros didáticos, dicionários e livros de referência – e antes de dizer que Brasil e Portugal não desejam de fato essa circulação, convém pensar nos países africanos, no Timor Leste. Ter uma ortografia unificada no português me parece muito melhor do que não ter. Só isso. Cruzar mares bravios é outra história, um trabalho para gerações. Um abraço.
Entendi. Eu não tinha pensado nos “livros didáticos, dicionários e livros de referência”, mas “apenas” em todo o resto. Agora faz todo sentido. Obrigado, Sérgio. Abraços.
Meu Deus! Já entrevejo, qual um Isaías no transe profundo da iluminação divina, a maré incontrastável, selvagem tsunami, de livros lusófonos a rebentar nas calmas livrarias brasileiras.
É um tantinho desolador ver um velho sistema ortográfico que a nós nos atende ir para o brejo, ainda mais quando está atrelado a toda uma vivência cultural da pessoa. Mas façamos nosso esforço em prol da unidade. Já a razão da caturrice e estrebuchar dos portugueses contra o acordo é que ele abre a porteira para a derrama das editoras brasileiras em mercado até agora cativo lá deles (Portugal e África). Resumindo, como se diz sempre, hoje em dia: “É a economia, estúpido!”
A justificativa para alterações na nossa língua para “aproximação” dos outros países que falam o Português é um absurdo. Primeiro que não vai haver “nunca” essa tal “aproximação”, mesmo que seja um sinal. Segundo é que por outros vários motivos a distância será sempre a mesma. Terceiro é que o custo para uma reforma neste nível é incalculável. Na área de tecnologia da informática já estão utilizando Português Europeu e Português Brasileiro. Veja que a solução é essa e já está sendo adotada.