Mesmo de férias – que decidi, num lance ousado, estender às redes sociais e parcialmente ao email, pois do contrário não seriam bem férias – eu não pude evitar que me chegassem ecos de uma polêmica cultural paulistana moderadamente interessante, aquela deflagrada pelo jornalista Álvaro Pereira Júnior ao criticar o clima de compadrio que ele acredita dominar a cena musical dita indie da cidade.
Sim, eu sei que o assunto ficou velho, que o jornalista já bateu e apanhou o suficiente. E não, o Todoprosa não voltou das férias transformado em blog de música. Acontece que comecei a pensar no que o episódio revela, por afinidade ou por contraste, sobre nossa província das letras.
O mote para essa ampliação de foco é dado pela professora universitária Ivana Bentes, que, num breve artigo sobre o caso, tomou enfaticamente o partido das bandas atacadas:
O debate e a polêmica (se tem uma) é a própria crise da onipotência da critica tradicional. Por que hoje o que ‘qualifica’ não é ‘a critica’ é o processo todo. Quanto mais bandas iniciantes, mais circuitos indies, mais gente pensando o ‘processo produtivo’ mais chances de surgir uma nova cena e grupos realmente interessantes. Só que agora as redes e seus novos agentes são o filtro, há críticos ‘orgânicos’ (ou não) que escrevem, analisam, criticam, sem necessariamente estarem nesse lugar ‘superior’ e onipotente que o critico de jornal se colocou. Eis o drama. Adeus aos indies ou adeus a um certo tipo de crítico?
Não se pode negar que Ivana tocou num ponto relevante: a agonia da tal “crítica tradicional”, que, agarrada ao que o nosso tempo decidiu ser a arbitrariedade e o autoritarismo intrínsecos a todos os julgamentos de valor, se vê agora condenada a ser só mais uma voz – e das mais suspeitas – entre as incontáveis vozes que, até há pouco tempo inaudíveis, o meio digital nos leva a captar como algaravia no volume máximo.
Isso não é novidade. Chega a ser surpreendente que Ivana dê um tratamento de “debate e polêmica” ao que já se aceita como ponto pacífico. O fenômeno que ela festeja é mais ou menos o mesmo que o jornalista e escritor José Castello registrava em tom melancólico há três meses no jornal literário “Rascunho”:
Será que nós, resenhistas, fazemos ‘crítica literária’? Será que os teóricos da academia fazem ‘crítica literária’? Quem são hoje os críticos literários? A resposta que venho arriscar, temerária, frágil, mas possível, é: a crítica literária não mais existe.
A cereja desse bolo é um texto publicado ontem no blog do Instituto Moreira Salles em que – com certa candura própria da idade, se me permitem uma observação geracional ao gosto do autor – o jovem escritor gaúcho Antônio Xerxenesky tece considerações sobre o ponto de vista comprometido e limitado de todo crítico literário:
A visão ‘biografista’ que tenta buscar relações entre a obra de um autor e sua vida pessoal está morta e enterrada desde o advento das teorias do formalismo russo. Mas e a biografia do crítico? A úlcera do Crítico Hipotético não pode ter deixado o sujeito indisposto para certas leituras? O fato de que ele passou dos quarenta não o deixará levemente rancoroso em relação a um jovem escritor que é visto como uma ‘promessa’?
É bem possível. O mesmo se pode dizer de seu estado natal, suas preferências sexuais, o time de futebol pelo qual ele torce, aquilo que ele gostava de ler quando adolescente, a maior ou menor elasticidade de sua ética e uma miríade de pré- ou pós-conceitos mais ou menos confessáveis. No limite, é o caso de perguntar: por que perder tempo lendo o que escreve esse cidadão?
Está tudo bem, mas, quando reina a unanimidade, tenho a mania de olhar para o outro lado. Agora que decidimos que a “crítica tradicional” está morta, que qualquer pessoa tem direito a voz e que todo ponto de vista será sempre parcial, que tal começar a prestar mais atenção no que leva algumas vozes, num processo independente de chancelas de autoridade e que se poderia chamar de espontâneo, a serem mais ouvidas do que outras? Ou naquilo que, em meio às parcialidades que se anulam e sem advogar uma imparcialidade impossível, ressoa acima da contingência, dos grupinhos, dos modismos?
Críticos, resenhistas, jornalistas, pitaqueiros, o nome importa pouco. Em vez de contemplar os estilhaços da cultura contemporânea como crianças boquiabertas diante de seu primeiro caleidoscópio, me parece que buscar encaixes e convergências – rudimentos de um idioma comum – é fundamental para a sobrevivência de uma ideia de crítica que, não tendo nascido com os famigerados rodapés, certamente não morreu com eles. E que é apenas o oposto do diálogo de surdos.
9 Comentários
Grande Sérgio, que bom que você voltou! Tava fazendo falta! Abraços.
Teus textos fizeram falta.
E quanto aos livros, rolou algo nessas férias que merece menção?
Olà Sergio Rodrigues
Seja bem – vindo da ferias!
Eu ,gostei do seu texto assim relacionando por afinidade ,ou por contraste o seu ponto de vista sobre a critica literaria. Vamos combinar Sérgio a “critica literària esta morta”.
O que eu gostaria que os criticos literarios fizessem é que fizessem uma critica literarìa de valor estètico em relação ao que leu. Que eles ,nos ajudassem ,a fazer um julgamento de valor estetico da obra em si. E desse julgamento determinasse o valor da obra: se ela tem valor literàrio , se trouxe uma perspectiva nova a literatura. Se inventou um novo estilo ,enfim… Se trouxe alguma novidade para literatura.
Muito bom, sergio, você sempre muito lúcido e ajustando o foco quase sempre na direção em que o objeto fica mais visível, ou divertido, ou legítimo. Gostei muito do modo como vc se apropria da discussão e a leva para um porto em que a literatura vige, com vigor,
um abraço,
clara
Xerxenesky, proto-escritor cujas todas as forças parecem ser oriundas de uma dieta exclusiva de danoninho©, tem uma insistência quase patológica de se dizer jovem, como se seus vinte e muitos anos fossem razão para que fosse incluído numa categoria merecedora de certa misericórdia. Aos 25 anos um número gigante de escritores já havia mostrado sua potência, dispenando qualquer epíteto juvenil (e.g. Dickens, Vilela, Joyce)
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Sérgio, bom que está de volta. Quanto ao assunto, assistia dias atrás um programa na qual três alunos do Pedro II foram chamadas a se manifestar sobre essa novidade de alteração de clássicos com a inclusão de monstros e vampiros. Pensei: aí vem aplausos. Que nada, os meninos, todos na faixa dos 15 anos de idade, foram unânimes: o resultado daquilo era muito ruim. Então, pensei, a literatura não morreu, e o crítico sério e honesto é necessário e fundamental para, como você faz, trazer ao leitor uma perspectiva sóbria sobre o produto em comento. Abraço
Apesar de apenas iniciante acompanhando o mundo literário de perto e ter uma visão ainda rudimentar de todo o cenário – e talvez ainda inocente, confesso – vejo uma crítica ideal tendo o crítico, em posição de juiz, como quem atribui valor ao objeto analizado, guiando o leitor para fora do mar da insignificância literária. Assim também tem por dever instruir o público, provar e sustentar seu julgamento por meio de argumentos sólidos, sem ser tendencioso. Soa platônico, mas toda essa retidão já parece perder o lustre e lugar entre tantos outros M.O. daqui e dacolá que em contrapartida são pautados em hype, vaidade, em simplesmente ser mordaz ou pedante e que leva à perda da virtude professoral da boa crítica, ou ao menos ao seu descrédito.
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