Desde os primeiros tempos do Todoprosa, que estreou há mais de quatro anos no extinto site “NoMínimo”, a seção “Começos inesquecíveis” foi sua marca mais forte. Não é difícil imaginar por quê. Em primeiro lugar, lembrar os grandes inícios da história do romance é uma forma de sugerir leituras do modo mais saboroso que existe, isto é, oferecendo pequenas provas. Se o começo agradou, por que não tentar o livro inteiro? Aberturas lapidares, afinal, são concebidas precisamente com este fim principal, manter o leitor lendo.
O que leva àquela que acredito ser a segunda razão do sucesso dos “Começos inesquecíveis”: o fascínio de ver se desenrolar essa mágica que não tem fórmula, que pode assumir mil feições, da simplicidade absoluta ao rebuscamento mais vertiginoso, mas que certamente é mais necessária do que nunca num mundo que vê a multiplicação diária de textos pedindo para serem lidos, enquanto nosso tempo, que não espicha, endurece o jogo. Como manter o leitor lendo? A abertura perfeita, capaz de fisgar qualquer um desde a primeira palavra, é obviamente um mito. Tentar se aproximar dela é o que vale.
Esta nova fase dos “Começos inesquecíveis” na Veja.com me apresentou de cara um problema: como não privar os novos leitores do blog dos melhores começos já publicados aqui e, ao mesmo tempo, evitar que os leitores antigos encontrem meras reprises? A solução que encontrei é publicar de novo os melhores deles, numa seleção pessoal. Dar a cara a tapa. Essa hierarquização não existia na seção até agora.
Para começar pelo começo, “Lolita”. O romance de Vladimir Nabokov sobre a paixão de um coroa por uma ninfeta (palavra que até então não existia, é invenção nabokoviana) caiu sobre os EUA em 1955 como uma bomba. Atômica. Ao escândalo que o tema provocou correspondeu outro, mais discreto mas provavelmente mais duradouro, no plano da forma: como era possível que aquele exilado russo conseguisse escrever tão diabolicamente bem em inglês, brincar com uma língua estrangeira como… um coroa com uma ninfeta!? Para sorte nossa, “Lolita” ganhou no Brasil uma tradução modelar de Jorio Dauster, que conserva a estranha música da abertura mais sensual que a literatura já viu passar:
Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.
Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita.
Semana que vem tem mais.
12 Comentários
“Para sorte nossa, “Lolita” ganhou no Brasil uma tradução modelar de Jorio Dauster, que conserva a estranha música da abertura mais sensual que a literatura já viu passar” – concordo!
Como faço para entrar em contato com vc a respeito de envio de exemplar de livro? Obrigada
Fernanda, meu email é sergio@todoprosa.com.br. Abs.
A tradução de Jorio honra Nabokov. Permitiria-me apenas, Sergio, a lembrança de que o começo “oficial” de Lolita está no prefácio de John Ray, Jr. Abs, CS
Falando de autores famosos, como Nabokov, sugiro um post sobre a Agatha Christie, que este ano faria 120 anos. Deixo registrado que ela é a autora que mais vendeu livros até hoje. E afinal, qual é o seu preferido da Agatha?
Sérgio, descobri o blog há pouco tempo, quando não se hospedava aqui ainda, o lia vez ou outra, apesar de não comentar. Agora o visito diariamente. Essa seção é muito bacana e vem muito a calhar, abs!
Sérgio, parece que você não aprende! Por acaso, você não se lembra daquilo que o Deleuze disse sobre o livro-objeto, que não tem relação com nada a não ser consigo mesmo? O livro que a gente não pode gostar nem desgostar, porque nada diz! Um livro, enfim, que não passa de um amontoado de folhas manchadas com traços a que nós, essas criaturas orgulhosas que se arrastam sobre a face da Terra, damos significados arbitrários! Você não pode gostar da Lolita, Sérgio, e anátema seja, por exprimir tão claramente, ó escândalo, o seu gosto pessoal.
Você, Sérgio, é o papel de bala que desavisadamente jogamos na rua.
Rafael: hehehe. Abraços.
Grande, realmente um dos mais instigantes e deliciosos “primeiros acordes” dum romance! Sou fã da prosa nabokoviana; mas a edição vertida em português que li de Lolita, é outra, porém agora fiquei com vontade de lêr o romance em outra tradução. A que eu tenho trata-se da tradução de Brenno Silveira, da coleção “Clássicos Modernos 11 – de 1974” um bonito volume em capa dura, comprado num sebo pela bagatela de R$ 10,00. Eis o começo da tradução de Brenno Silveira:
Lolita, luz de minha vida, fogo de meu lombo. Meu pecado, minha alma. Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. LO.LI.TA.
Era LO, apenas LO, pela manhã, com suas meias curtas e seu um metro e quarenta centímentros de altura. Era Lola em seus slacks. Era Dolly na escola. Era Dolores quando assinava o nome. Mas, em meus braços, era sempre Lolita.
A propósito, trago-lhes uma coisa que será grande prazer, este começo inesquecível narrado em elegante inglês britânico e a bela voz do ator inglês Jeremy Irons, lançando mão do You Tube: http://www.youtube.com/watch?v=pezG_PlwApg
J. Paulo: obrigado pelo link.
Norberto, li poucos livros de Agatha Christie e há muitos, muitos anos, mas gosto da ideia de fazer do narrador o assassino. Em “O assassinato de Roger Ackroyd”, confere?
Abraços a todos.
Sérgio, depois que eu li Lolita, de Nabokov, eu criei sempre um liame entre esse escritor e um nosso, que é o mestre Nelson Rodrigues. E o porquê eu não sei. Mas minha maior curiosidade é saber se Nelson Rodrigues leu Nabokov, e mais – precisamente Lolita; além – se ele chegou a escrever alguma coisa acerca dessa obra. E o sr., com seu vasto conhecimento literário, poderia enfim me sanar essas sôfregas curiosidades. Eu vejo muita semelhança entre Nabokov e N.Rodrigues, acho mesmo que, se há as ninfetas nabokovianas, há também as ninfetas rodriguianas. Dada as diferenças de terra e cultura. Esta sensação se torna quase que inapelável, principalmente, quando leio alguns contos da célebre obra “A Vida como Ela É…”, poderia especificar um, a título de exemplo – “Fim de Amor” nesse conto, da série A Vida como…, existe a personagem Ivete, púbere e bela. É uma ninfeta nabokoviana, sem dúvida. Procurem, os senhores, por esse conto. Há ali, um leitor de Lolita, não é possível que não. A similitude de algumas personagens – femininas, jovens e belas, por vezes rebeldes, petulantes, constitui verdadeiras Lolitas brasileiras ou rodriguianas.
Enfim, Sérgio, desculpe-me por ter-me extendido tanto. Mas me dê alguma certeza, que já será reconfortante.
Abraços.
Show de bola, sempre foi uma das minhas colunas favoritas no site.