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Os melhores começos inesquecíveis (IV)

03/09/2010

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.

O começo de “Cem anos de solidão”, romance lançado em 1967 por Gabriel García Márquez (Record, tradução de Eliane Zagury), é um dos maiores clássicos do gênero, sobretudo na preferência do leitor comum. Presença obrigatória em listas de aberturas romanescas memoráveis, vale a pena examinar mais de perto o mecanismo que o torna tão eficaz: a superposição de tempos narrativos.

García Márquez demarca com brevidade impressionante dois momentos de ação, separados por “muitos anos”, e em cada um deles pendura um anzol que o leitor dificilmente deixará de morder. O primeiro traz uma isca política ou mundana: quais foram os motivos e o desfecho do tal fuzilamento? O segundo abre uma dimensão poética de formação, situando numa “tarde remota” a transmissão entre pai e filho de um saber sobre a natureza. Sem forçar barra nenhuma, pode-se imaginar até um terceiro anzol em que a isca é a curiosidade de saber como histórias tão díspares vão se combinar.

E tudo isso em duas linhas.

Além de enredar o leitor em mais de uma trama ao mesmo tempo, a abertura que superpõe tempos tem o mérito de fixar à vista de todos as estacas entre as quais vai se estender a corda da narrativa – que, ao contrário do que supõem muitos literatos, deve manter certa tensão até o fim para que o leitor equilibrista não despenque lá de cima e desista do livro.

O escritor colombiano, que nunca demonstrou dúvida sobre a necessidade básica de prender o leitor, gosta do truque. Muitos anos depois, em 1981, havia de repeti-lo na abertura de “Crônica de uma morte anunciada” (Record, tradução de Remy Gorga, filho), com menos economia de meios e, a meu ver, menos sucesso:

No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros. “Sempre sonhava com árvores”, disse-me sua mãe 27 anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira ingrata.

Mas García Márquez não tem a patente desse tipo de começo. Um exemplo feliz, próximo de nós no tempo e no espaço, é o do romance “O segundo tempo”, de Michel Laub (Companhia das Letras), lançado em 2006:

Hoje o futebol está morto, e duvido que alguém ainda chore por ele, mas não era assim no dia 12 de fevereiro de 1989.

11 Comentários

  • Marcelo ac 03/09/2010em17:38

    Descobri Michel Laub. Parece que ele também tem essa coisa maravilhosa que é a música na ponta dos dedos. G.G.Márquez tem e esbanja isso, mas…

  • João 03/09/2010em18:10

    “Cem Anos de Solidão” é, indiscutivelmente, uma obra irretocável.

  • maria 03/09/2010em19:45

    Acho o Gabriel Garcia Marquez é um gênio dos começos inesquecíveis. Que tal este, tirado de um dos “Doze Contos Peregrinos”, no original?

    Buen viaje, señor presidente

    Estaba sentado en el escaño de madera bajo las hojas amarillas del parque solitario, contemplando los cisnes polvorientos con las dos manos apoyadas en el pomo de plata del bastón, y pensando en la muerte. Cuando vino a Ginebra por primera vez el lago era sereno y diáfano, y había gaviotas mansas que se acercaban a comer en las manos, y mujeres de alquiler que parecían fantasmas de las seis de la tarde, con volantes de organdí y sombrillas de seda. Ahora la única mujer posible, hasta donde alcanzaba la vista, era una vendedora de flores en el muelle desierto. Le costaba creer que el tiempo hubiera podido hacer semejantes estragos no sólo en su vida sino también en el mundo.

  • Ernani Ssó 04/09/2010em10:59

    Pra mim, a melhor parte da isca do começo de “Cem anos” é o gelo. Como conhecer o gelo? Mesmo nos trópicos, o gelo é uma coisa bastante manjada. O fato de García falar do gelo como extraordinário (mas sem ênfase, note-se), coisa que realmente é, se pensarmos bem, nos força a um olhar novo e malicioso. Acho que a cena em que o menino vai conhecer o gelo é muito mais eficaz, em termos de humor ou de fantasia, do que Remédios, a Bela, subindo aos céus agarrada nos lençois, por exemplo. O pessoal que pegou o bonde andando do realismo fantático talvez não tenha notado muito a diferença. Enfim.

  • Marcelo ac 04/09/2010em14:13

    Quando eu olho para a Europa e vejo o que a gente já fez por aqui, e que às vezes a gente ainda olha para lá com aquele queixo meio caído, aparvalhado, me dá um desânimo, uma tristeza tão funda, que a caneta quase seca e os olhos marejam!

  • Arthur 04/09/2010em20:43

    Taí um romance que li recentemente e que não tem aquele problema de ficar apenas na problemática da linguagem. Parece que não tá acontecendo nada, mas cada capítulo você pressente algo, sobre o que sabemos no próximo capítulo com mais detalhes. Algumas surpresas e reviravoltas, nada muito novelesco, que desembocam num final difícil de prever (ao menos o foi para mim). Gostei desse “O segundo tempo” do Laub.

  • J.Paulo 05/09/2010em03:27

    Acho que os grandes escritores sabem que é preciso – não se pode desprezar – esse artifício tão consagrado pelos folhetinistas. Ora, é impossível se deparar com um texto cujo começo diz que um sujeito ao acordar de sonhos inquietantes viu-se transformado num gigantesco inseto; e não querer saber o desfecho disso. É, pois, um tempero que não escapa aos grandes escritores.

    Abraço a todos.

  • Foguete de Luz 11/09/2010em13:23

    Fomos criados para o logos e jamais para o aleatório sem sentido.”Contar” é coisa de gente que pensa. Contar as coisas é muito bom. Já pensou pensar que está debaixo de uma chuva translúcida e na verdade estar debaixo de uma cagada de pássaros? Bem, acho que aqui na região pintou umas cagadas no ar, pois foi toxoplasmose para tudo quanto é lado, e niguém descobre o mistério. Depois vem essa da titica chovendo na França. Algo estranho no reino do ar acontece e logo logo isso vai virar um bom conto. Ou não? hehe!

  • Foguete de Luz 11/09/2010em13:28

    Quando li: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo” o gelo foi para mim, não blocos duros brancos, mas corações endurecidos a serem enfrentados no pilotão de fuzilamento. Verdade. E vim comentar por causa do comentário da Maria do dia 03 das 19 e 45.

  • Foguete de Luz 11/09/2010em13:32

    Ai, que furo! Não é da Maria, é do Ernani Ssó do dia 4 às 10 e 59. Desculpa-me, Maria, desculpa-me, Ernani.

  • Mário de Oliveira Pinheiro 17/04/2014em20:50

    Onde passa esse “bonde” do “Realismo Fantástico” na obra de Gabu?