Na manhã em que a última filha dos Lisbon decidiu-se também pelo suicídio – foi Mary dessa vez, e soníferos, como Thereza –, os dois paramédicos chegaram à casa sabendo exatamente onde ficavam a gaveta das facas, o forno, e a viga no porão à qual era possível atar uma corda.
Não se pode dizer que o início da novela “Virgens suicidas”, de Jeffrey Eugenides (na ótima tradução de Marina Colasanti), deva sua estranha beleza ao fato de abrir com esse prosaico “na manhã em que…”, que chega a lembrar o clichê “era uma vez” dos contos de fadas. No entanto, ao escorar tão firmemente no tempo a história, o autor lhe confere densidade e verossimilhança.
Um crítico mais intolerante com as artimanhas dos narradores poderia argumentar justamente o contrário: que estamos diante de um ponto fraco do texto, uma concessão à banalidade e ao lugar-comum. Foi o que fez Paul Valéry em sua famosa diatribe contra o romance, ao se dizer incapaz de escrever uma frase tão prosaica quanto “A marquesa saiu às cinco horas”.
Bobagem. A tal frase só será banal se a marquesa se mostrar uma personagem bidimensional ou desinteressante – o resto é preconceito contra a arte narrativa, que deve, o mais depressa possível, arrancar o leitor de seu próprio tempo, aquele em que ele abre o livro, e jogá-lo dentro do tempo da história: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento…”, “Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã…”, “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo”, “Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos…”. Duvido que García Márquez, Franz Kafka, Marcel Proust e Charles Dickens fizessem alguma objeção à escapadela da marquesa.
9 Comentários
Criticar uma narrativa por sua primeira frase é puro preconceito.
A escrita é o que é, e, como tal, deve ser cuidadosamente analisada – e apreciada.
Na minha experiência de leitor, revisor, livreiro e até assistente editorial da Ediouro, nunca conheci um início tão brilhante quanto o de “A lua vem da Àsia”, do original Campos de Carvalho: “Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.”
“arrancar o leitor de seu próprio tempo, aquele em que ele abre o livro, e jogá-lo dentro do tempo da história”…
O final é feliz? É que não gosto muito da idéia do fuzilamento… kkkkk
Era uma vez um mundo…
Tamu juntos nessa? Uau!
Que mania de se gostar tanto de começos onde a morte está na linha de frente. Engraçado, a Biblia fala de morte, mas morte do eu. Essa ninguém quer… mas como o Vinícius Trindade, podemos ver claramente que matar a lógica é sempre o xis da questão dos inícios inesquecíveis…
Ah! Eis um começo inesquecível:
“No princípio, Deus!” E nada seria sem esse princípio. Nem o nada.
Começos de livros são sempre difíceis, e adorei seus pertinentes comentários. Não sabemos direito como começar, sabemos tudo da história, menos qual será a primeira linha. Mas sem ela, não chegamos à segunda, nem muito menos à terceira. A primeira linha é um desafio. “Carol entra em casa e já pergunta: – Lê, cadê a mãe?” assim começa meu “Todas as estrelas do céu”, um romance adolescente sobre dois irmãos adotivos, justo Caroline e Leandro, que se apaixonam. O começo já começa com cara de meio. O leitor “despenca” na polêmica história que vem conquistando jovens de todo o país. Meu próximo livro, “Três Céus”, começa mais tranquilo, mas se passando na aviação, a 900km/h e 12mil metros do chão, isso não indica nada do que vem pela frente. O começo do livro é sempre um desafio, o que escrever na primeira linha?! Por onde começar? Se temos dificuldades pra começar uma receita de bolo ou qualquer outra coisa elementar, que dizer de um livro que levará meses para ser escrito e virará nosso companheiro por esse tempo?! Muito pertinente o tema, parabéns!
Sérgio, gosto muito do seu blog e em particular das postagens sobre começos inesquecíveis. Lembro então de um outro começo que também menciona a morte. É um conto famosíssimo, filmado e adaptado para o cinema, TV, quadrinhos etc., mas que tive a felicidade de ler quando criança, antes de ter visto qualquer uma destas versões e, portanto, sem nenhum conhecimento prévio do enredo. Estava num livro de contos de Natal de autores famosos que ganhei de presente do meu pai e que me chamou a atenção justamente pelos seus parágrafos iniciais:
“Para começar, Marley morrera. Não havia sobre isso a menor dúvida. O registro de seu enterro fôra assinado pelo padre, pelo sacristão e pelo armador. Scrooge assinara também. E a sua assinatura era válida na Bolsa, qualquer que fosse o papel sobre a qual estivesse aposta.
Não resta, pois, a menor dúvida de que o velho Marley tinha morrido. Todos podiam ignorar essa morte, exceto Scrooge. Como ele havia de ignorá-la, se o defunto não tinha outro sócio, outro testamenteiro, outro administrador, outro herdeiro, outro amigo, outro parente senão Scrooge?” Charles Dickens, “Um conto de Natal”.
Abraços.
Obrigado pela mensagem, Flávia. Boa lembrança, a desse conto de Dickens. Um abraço.
Melhor do que o início da novela é o que a personagem Cecilia diz poucas páginas depois (pg 10), frase que contém toda a essência do livro:
“Evidentemente, doutor, o senhor nunca foi uma garota de 13 anos”.