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‘Outras cores’, de Pamuk: literatura é remédio

05/11/2010

Atrás da beleza dos livros de Nabokov há sempre algo de sinistro (ele usou essa palavra num dos seus títulos), um cheiro de tirania. Se a atemporalidade da beleza é uma ilusão, isto é em si um reflexo da vida e da época de Nabokov. Sendo assim, por que fui afetado por essa beleza, escrita, como é, nos termos de um pacto faustiano com a crueldade e o mal? (…)

Para compreender melhor o que chamo de crueldade de Nabokov, examinemos o trecho [de “Lolita”] no qual Humbert visita o barbeiro na cidade de Kasbeam – só para passar o tempo, pouco antes de Lolita o deixar (de modo tão cruel, mas com toda a razão). Trata-se de um velho barbeiro de província, com o dom da tagarelice, e enquanto faz a barba de Humbert fala com volubilidade sobre o filho jogador de beisebol. Limpa os óculos no avental por cima de Humbert e deixa a tesoura de lado para ler recortes de jornal sobre o filho. Nabokov dá vida ao barbeiro em poucas frases miraculosas. (…) Mas no fim Nabokov joga sua última e mais chocante cartada. Humbert presta tão pouca atenção ao barbeiro que só no último instante percebe que o filho a que se referiam os recortes de jornal morrera havia trinta anos.

Em duas frases – que levou dois meses para aperfeiçoar – Nabokov evoca uma barbearia de província e as gárrulas bazófias do barbeiro sobre o filho, com um elã e uma atenção para os detalhes dignos de Tchekhov (escritor que Nabokov admirava explicitamente); então, tendo arrastado o leitor para o melodrama do “filho morto”, abandona-o imediatamente e volta para o mundo de Humbert. Compreendemos, com essa ruptura cruel e satírica, que nosso narrador não tem o mínimo interesse nas tristezas do barbeiro. Pior, tem certeza de que, como nós também fomos apanhados no pânico amoroso de Humbert, não nos demoraremos no filho do barbeiro, morto havia trinta anos, mais do que ele o faz. E assim compartilhamos a crueldade que é o preço da beleza.

São trechos como este que têm feito, para mim, o prazer maior de ler “Outras cores – ensaios e um conto”, extensa coleção de textos esparsos do escritor turco Orhan Pamuk (Companhia das Letras, tradução do inglês de Berilo Vargas, 480 páginas, R$ 57,00). Se o grande apelo midiático do volume vem das reflexões do autor sobre o processo que sofreu em 2005, acusado de “denegrir a identidade turca”, é como um leitor apaixonado, generoso e lúcido que o Nobel de Literatura de 2006 mais me impressiona.

Há mais do que sagacidade em seus comentários sobre Vladimir Nabokov ou seu antípoda Fiodor Dostoievski, sobre a impressão de que Stendhal lhe sussurra segredos ao ouvido, Sterne faz da digressão um espelho da vida e Thomas Bernhard é a leitura mais indicada quando a depressão não nos permite ler mais nada com um mínimo de prazer. O que essas observações traduzem, no fim das contas, é uma determinada postura diante dos livros e das histórias que eles contam. Uma postura que combina devoção religiosa com deslumbramento infanto-juvenil e que não pode deixar de parecer adorável a quem quer que, vivendo entre livros, deles e para eles, já tenha se apanhado em algum momento numa crise de fé: afinal, quando essa roda-viva começou, a parte mais importante de tudo era o prazer, não era?

Para essas almas atormentadas, “Outras cores” é um santo remédio – para usar uma imagem empregada por Pamuk no prefácio:

Às vezes cheguei a pensar que estava totalmente morto, e tentava, com a literatura, insuflar de volta alguma vida no meu corpo morto. Para mim, literatura é remédio.

8 Comentários

  • Rubia 05/11/2010em11:40

    Ótimo artigo!
    Há muito ouço falar em Orhan Pamuk, mas até então não o li.
    Prefiro começar por “Outras Cores” a “Neve”, já que Nabokov me inspira a mesma beleza e maldade (excelente trecho/análise de Lolita).

  • Glaucia Altieri 05/11/2010em14:23

    Excelente artigo. Despertou-me p/a Orthan Pamuk.

  • Silvio 05/11/2010em14:57

    Muito bom, Sérgio. Acho que uma engenhosa metáfora do fascínio que a ficção (ou escrita, em geral) exerce sobre nós é o ciclo de contos Decameron. Em meio à peste negra, desagregação, fome e desespero, um grupo de pessoas se reúne para contar aventuras. Pelo simples gosto de ouvir histórias, que entretêm e, talvez, não necessariamente, possam dar novas visões sobre esse nosso convulsionado mundo, para o qual temos que voltar quando a narrativa termina. Meu gosto é um tanto restrito, mas sei que essa experiência pode vir desde versos de Ovídio, salmos da Bíblia, experimentalices pós-modernas até banalidades de auto-ajuda.

  • Marcelo ac 06/11/2010em10:44

    É o que você diz, com toda a sabedoria, Sérgio: Quando essa roda-viva começou, a parte mais importante de tudo era o prazer. Para ler e para escrever,sem dúvida,tem que ser sempre, sempre! Quando vira burocracia, é hora de parar e pensar um pouco, de procurar os mestres e se deliciar novamente. Grande,Sérgio!

  • Rosângela 07/11/2010em21:46

    E não podemos esquecer que remédio sempre cura. Ou deveria, não?

  • J.Paulo 11/11/2010em21:43

    “Às vezes cheguei a pensar que estava totalmente morto, e tentava, com a literatura, insuflar de volta alguma vida no meu corpo morto. Para mim, literatura é remédio.”

    Incrível, como às vezes um ser humano tem a capacidade de falar por outro. Este turco falou por mim.

  • charlles campos 05/12/2010em08:28