A convicção de que o romance tem um centro faz sentir que um detalhe supostamente irrelevante pode ser substancial e que o significado de tudo que está na superfície pode ser bem diferente. Romances são narrativas abertas a sentimentos de culpa, paranoia e ansiedade. A sensação de profundidade que nos dá a leitura de um romance, a ilusão de que o livro nos faz mergulhar num universo tridimensional, vem da presenca do centro, seja ela real ou imaginária.
O que basicamente separa um romance de um poema épico, ou de uma tradicional narrativa de aventura, é a ideia do centro. Romances apresentam personagens bem mais complexos que os de poemas épicos; focalizam pessoas comuns e exploram todos os aspectos da vida diária. Mas devem essas qualidades e esses poderes à presenca de um centro em algum lugar ao fundo da cena e ao fato de lermos com essa esperança. Como os romances revelam detalhes triviais da vida e nossas pequenas fantasias, hábitos diários e objetos familiares, o leitor lê com curiosidade – a rigor, com assombro –, sabendo que tudo aponta para um sentido mais profundo, para um propósito em algum lugar ao fundo da cena. Cada característica da paisagem geral, cada folha e cada flor são interessantes e intrigantes, porque há um sentido oculto por trás.
O ensaio do escritor turco Orhan Pamuk publicado na mais recente edição da revista “Serrote” adota o ponto de visto do leitor, mais que o do escritor, para investigar o que faz do romance a grande forma de narrativa literária da era moderna. Trata-se de uma de suas conferências na tradicional série Norton Lectures, da Universidade de Harvard, que deram origem a um livro inédito em português (“O romancista naïf e o sentimental”, título que cita o de um famoso ensaio de Schiller).
O que mais me chama a atenção é o fato de Pamuk, prêmio Nobel de Literatura de 2006, aludir o tempo todo a uma espécie de pacto entre leitor e livro. Ele usa palavras como “esperança”, “otimismo” e “expectativa”. E dessa forma, sem fazer uma defesa que seria insustentável da ficção como representação acurada do real e mesmo sem preconizar o realismo (põe no mesmo saco o experimentalismo do noveau roman), passa perto de explicar por que a tradição do romance se mantém viva após sofrer de críticos e dos próprios escritores, que contra ela são obrigados a lutar dia e noite, tantas tentativas de assassinato.
No fundo, o ensaio trata de fé. O romance tem poder sobre quem o lê querendo acreditar que ele tem poder. Qual poder? Para Pamuk, o de inocular no leitor o “otimismo” de buscar por trás das palavras, num certo “centro secreto”, um sentido da (ou para a) vida. É claro que este sentido pode ser provisório, vago, fantasmagórico, manifesto sob a forma indefinível de arrepio ou presságio. Pode mesmo nem estar lá. O que importa é a busca.
A questão de ler com fé – aquilo que John Updike chamava de “submeter-se ao feitiço” – me parece interessante num momento em que, como ocorre ciclicamente, a prosa de ficção volta a ser declarada por alguns teóricos uma arte decadente ou morta. Não se trata, neste caso, da perda de fé momentânea em determinado livro, que qualquer leitor experimenta quando um autor o decepciona. Trata-se da ausência de fé na própria linguagem romanesca, aquilo que levou Paul Valéry a declarar, numa infinitamente citada diatribe contra a ficção, que seria incapaz de escrever uma frase prosaica como “A marquesa saiu às cinco horas”.
Para quem acredita que, na boa literatura, a saída da marquesa às cinco horas, insignificante em si mesma, é um elemento a ser encaixado num quebra-cabeça maior e, com algum otimismo, revelador, esse tipo de descrença será sempre a marca de um antidemocrático filistinismo:
O sonho de alcançar o conhecimento mais íntimo, mais precioso do mundo e da vida sem ter de suportar as dificuldades da filosofia ou as pressões sociais da religião – e fazê-lo com base na própria experiência, usando o próprio intelecto – é uma espécie muito igualitária, muito democrática, de esperança.
5 Comentários
Sergio, continuo adorando ler suas críticas e costumo acompanhar com interesse tudo o que você escreve (e seguir os links). Adorei o texto sobre James Ellroy, do qual só li,até hoje, o “Sobre meninos e lobos”. Gostaria de saber de quem é o trecho que finaliza sua crítica de hoje. É seu, do Orhan Pamuk ou do Updike? Traduz exatamente o que sinto com relação à literatura de ficção. Obrigada pelas ótimas indicações.
Pamuk tem demostrando ser um formidavel ensaista literario.
Seu livro “Outras Cores” traduzido recentemente é um primor! O modo sedutor de discorrer sobre a escrita de autores como CALVINO,NABOKOV E BERNHARd, alem da sua propria produçao, faz com que se admire ainda mais o autor de “Neve” e O “Livro Negro”. Assim como outro recente ganhador do Nobel, coetzee,Pamuk faz bonito como comentador.
Amelia, obrigado. O trechinho final é do Pamuk, como todos os que vêm em destaque no corpo da nota. Desculpe se ficou ambíguo, não foi a intenção. “Sobre meninos e lobos” é do Dennis Lehane, que tem mesmo algum parentesco com o Ellroy, embora, a meu ver, voe mais baixo. Um abraço.
Devo dizer que sou um leitor fiel a você mais pelo que você me passa de raiva do que propriamente de deleite. Apesar da intensa carga de informações valiosas que tem seus textos, me cansa muito esse apelo eternamente repetitivo da “decadência do romance”, do “fim da narrativa”. Que agonia prolongada desse nunca terminado cadáver! Há um século que ele está por pronunciar suas últimas palavras, e, no entanto, fica aí, em seu leito de morte, soltando calhamaços vigorosos, histórias que são sempre as mesmas mas porém outras. Será que realmente é o caso a insistência por uma eutanásia?
Maravilha, Charles! Espero continuar a enraivecê-lo. Concordo com Kingsley Amis: se não for para atazanar, para que escrever? Só ficaria mais realizado se você se incomodasse pelos motivos certos, e não por uma defesa da morte do romance que nunca me passou pela cabeça fazer e que, como tem tido bastante espaço por aí ultimamente, venho negando de todas as formas ao meu alcance. A deste post inclusive. Um abraço.