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Pelé e a aura do livro

30/06/2010

O mais famoso ensaio do pensador alemão Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, pode ter algo a nos dizer sobre este momento em que o povo do livro se divide em tribos, todas em pé de guerra, diante do avanço do livro digital.

Há os que acham que o livro de papel logo estará extinto – entre estes, uns festejam, outros choram – e há os que apostam a reputação em sua eternidade, dividindo-se, por sua vez, entre moderados que acreditam numa partilha do mercado e radicais que zombam dos e-books como fogo de palha ou frescura para poucos.

Penso em Benjamin enquanto folheio – e desfolho, e desdobro, entre outros verbos que não me ocorrem agora – o recém-lançado “Pelé – Minha vida em imagens” (Cosac Naify, tradução de Bernardo Ajzenberg, R$ 140,00). E se à “aura” da obra de arte original, única, sobre a qual Benjamin teorizava no ensaio de 1936, corresponder em nossa era de reprodutibilidade digital uma aura, não mais de coisa original, mas de coisa-coisa, material, tangível?

Nada a ver com a turma que suspira por aí pelo “cheiro do papel”. O apelo sensorial aqui vai muito além do olfato.

Não se pode negar que “Pelé – Minha vida em imagens” não poderia ser nada além de um livro de papel. Num iPad, por maior que seja a “mágica” de Steve Jobs, perderia quase todo o seu encanto.

O texto em si é charmoso, mas não traz novidade: trata-se de uma tradução diferente da mesma autobiografia de Pelé que um ghost writer inglês redigiu para a editora britânica Simon & Schuster e que a Sextante lançou aqui em 2006. Como objeto, porém…

O livro é uma festa visual e tátil que reúne, além de fotografias do chamado Rei do Futebol, reproduções em formatos variados, todas encartadas em nichos e portanto destacáveis, de itens de colecionador: estão lá a primeira carteira do jovem Edson como atleta da Liga Bauruense de Esportes, um adesivo vintage do Santos, cartazes, ingressos, recortes de jornal e revistas, entre outros mimos. Tecnicamente, o nome disso é scrapbook.

O festival lúdico tem um preço alto, evidentemente. Mas se as previsões mais catastróficas para o livro de papel se confirmarem, o caminho apontado por “Pelé – Minha vida em imagens” deve bastar para garantir ao formato uma longa sobrevida. Aura é aura.

4 Comentários

  • Silvio 01/07/2010em13:15

    Boa, Sérgio. Quase as mesmas impressões que tive quando li o excelente ‘Hitchcock/Truffaut: Entrevistas’, edição definitiva da Companhia das Letras (sem merchan, só reconhecendo o trabalho bem feito dos caras), também recheado de belíssimas imagens. Sei dos méritos práticos do e-book, mas há experiências de embalagem+conteúdo cujo impacto só o bom e velho livro de papel continuará a nos proporcionar. E reforço a última observação: foi o dinheiro mais caro que já investi em um livro, mas valeu cada centavo.

  • pedro curiango 01/07/2010em18:52

    Desculpe a ironia, mas você me parece dizer que a salvação é o “coffee-table book,” cuja qualidade de livro é negada por muita gente. Para quem define o livro não pela matéria de que é feito, mas sim por seu formato [estrutura] e conteúdo (funcionalidade), sua salvação (do livro) me parece muito mais ser o “e-book.” [NB – E, olhe lá, sou um antiquário, quando se trata de meu amor pelos papel impresso… ou manuscrito, porque assim foram os livros por muito tempo.]

    • sergiorodrigues 01/07/2010em19:15

      É mais ou menos isso mesmo, Curiango. Talvez você tenha sido menos irônico do que imagina. Estou especulando neste post sobre o futuro do livro de papel, não do livro como ideia – este, a meu ver, não só não sofre ameaça alguma com o avanço digital como ganha até uma boa injeção de ânimo. Quando dizemos “Quixote”, estamos nos referindo a um certo conjunto de palavras encadeadas naquela ordem (a ordem que Pierre Menard queria copiar sem copiar) que Cervantes nos deixou, certo? Este livro, que passou por um sem-número de edições desde que foi lançado, é coisa imaterial desde sempre. O que ele perde lido no Kindle? Nada de nada. Isso quer dizer que uma edição antiga e rara do Quixote não tem valor algum? Pelo contrário, pode valer uma fortuna, como você bem sabe. É aí que entra a aura. Que as editoras tradicionais, além de investir no digital, vão buscar cada vez mais o que a materialidade do papel tem de insubstituível – seja no formato de coffee-table book ou em outros – me parece bastante evidente. Um abraço.

  • Pedro David 01/07/2010em22:30

    Salve Sérgio, estamos de volta!

    Realmente o fim do livro e o fim do livro de papel são coisas extremamente diferentes: estava outro dia lendo a “História da Literatura Ocidental”, do Carpeaux, e fui descobrindo que alguns clássicos gregos não chegam nem a ser esse “certo conjunto de palavras encadeadas naquela ordem” de que você fala, tamanha a transformação que foram sofrendo ao longo do tempo… Entretanto, ninguém aqui vai dizer que a Odisséia não vá sobreviver pra sempre, de alguma forma, né?
    Agora pensando, a gente poderia imaginar os perigos que eles sofrem hoje… O que corresponderá, no futuro, a um incêndio da Biblioteca de Alexandria ? Um ataque virtual da Al Qaeda que destrua os livros digitalizados ?

    É que estamos muito avançadinhos em tecnologia, mas acho que nossa miséria humana é ainda meio parecida, não ?

    em tempo: Há alguma razão específica pros textos não estarem “justificados” ? É que tal como essa idéia de pular linha após parágrafo, os textos justificados parecem oferecer uma leitura mais fácil na internet… Enfim, desculpa a intromissão, mas é só dica de quem o lê faz tempo!!! Se estão assim por opção, não vai ser por isso que deixarei de estar aqui.. ABS