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Pelé pilotava o carro de James Bond

31/05/2014

pelé e o aero willysEscrevi o artigo abaixo por encomenda da revista literária colombiana “Arcadia”. Com tradução de Camila Moraes, ele saiu no número que está nas bancas como parte de uma série de textos assinados por dez escritores, cada um de um país que disputará a Copa do Mundo: Argentina, Brasil, Colômbia, Espanha, França, Inglaterra, Itália, México, Portugal e Uruguai, em ordem alfabética na edição. A ideia era que cada um evocasse, “em forma de memória literária, sua relação com a seleção nacional”.

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No livro “Febre de bola”, o escritor inglês Nick Hornby fala de como ficou impressionado quando, criança, viu jogar a seleção brasileira de Pelé, Tostão, Jairzinho e Rivelino na campanha do tricampeonato mundial, em 1970. Bem, ele não estava sozinho. A contribuição original de Hornby ao pasmo mundial diante da superioridade daquela equipe é uma metáfora infantil surpreendente: para ele, o futebol apresentado pelo Brasil no México lembrava “o Rolls-Royce cor-de-rosa de Penélope Charmosa e o Aston Martin de James Bond, ambos equipados com artefatos sofisticados, tais como assentos ejetáveis e armas ocultas, que os colocavam acima da banalidade entediante”.

Não sei se leitores mais novos conseguirão captar o encanto singelo dessa imagem de futurismo datado. Para mim, nascido quatro meses antes do segundo título mundial brasileiro, em 1962, e que guardo a euforia que tomou conta do país em 70 entre minhas memórias mais antigas e caras, carros cheios de botões e armas secretas evocam mais do que uma fantasia infantil excitante. Falam de um tempo – que se julgava esperto, mas hoje parece ingênuo – em que viagens espaciais e eletrodomésticos cada vez mais assombrosos pareciam apontar para um futuro de conforto e prosperidade. O chamado progresso tecnológico era indiscutivelmente um aliado da humanidade, não era?

A história não seria tão simples, como se sabe. Já não era simples àquela altura, a não ser aos olhos da criança que eu era: o alto preço da “modernidade” materializada em viagens espaciais e eletrodomésticos assombrosos vinha sendo pago pelo Brasil pelo menos desde o golpe militar de 1964, que os Estados Unidos apoiaram. No entanto, isso não me impede de ver charme na comparação inusitada da arte de Pelé e seus companheiros com um artefato tecnológico de ponta – melhor ainda, um artefato tecnológico ficcional, fantasioso, flamboyant, concebido não apenas para superar os inimigos mas para divertir o público enquanto o fazia. Aos oito anos, eu não poderia ficar mais orgulhoso nem que meu pai tivesse na garagem o Aston Martin de James Bond no lugar de seu Volkswagen.

Mas chega de criancice. Já adulto, eu ia descobrir com o melhor livro de futebol escrito no país, chamado “O negro no futebol brasileiro”, que a contribuição original dada por nossos jogadores a esse esporte importado da Inglaterra não devia nada à tecnologia. Pelo contrário, pode-se mesmo chamá-la de antitecnológica: a vitória dos jogadores descalços sobre os de chuteira novinha. O curioso é que isso, em vez de contradizer a metáfora automobilístico-futurista de Hornby, compatriota dos criadores do futebol, de alguma forma a reforça.

Escrito pelo jornalista Mario Filho, um entusiasta dos esportes tão importante que depois de sua morte deram o nome dele ao estádio do Maracanã, “O negro no futebol brasileiro” (lançado em 1947 e atualizado em 1962) conta a história desse esporte no país como epopeia de afirmação cultural e racial de todo um povo. Na narrativa convincente de Mario, nosso jeito de jogar foi inventado nas primeiras décadas do século XX por sujeitos que não tinham nem chuteiras, nem bolas de couro, nem livros de regras, nem campos gramados. Tais “artefatos de ponta” eram exclusividade dos sócios dos clubes de elite, que a princípio monopolizavam o futebol. Uma gente condenada a imitar, sem jamais superar, o estilo europeu no trato da bola.

Num momento histórico em que a abolição da escravatura era notícia recente, não havia lugar naqueles clubes para jogadores pobres, muito menos se fossem negros ou mulatos. Pois foram estes que, jogando em campinhos improvisados, com bolas e traves improvisadas, criaram aos poucos um novo jeito de tratar a pelota. Um jeito nascido da penúria, que driblava as dificuldades para transformar carência em trunfo. Não demorou para que os próprios clubes se vissem obrigados a abrir suas portas – a princípio a contragosto – àquela nova estirpe de craques desdentados, muitos deles analfabetos. Mas como jogavam! No estilo impregnado de cultura negra, cheio de curvas e ginga, que eles impuseram ao retilíneo jogo inglês o sociólogo Gilberto Freyre, admirador de Mario, viu “a capoeiragem e o samba”.

Foi essa longa história subterrânea de reinvenção do futebol por brasileiros pobres que, depois das erupções precoces de 1958 e 1962, atingiu a plena maturidade em 1970 na forma de uma tecnologia inteiramente nova, acabada, espantosa. Mais do que isso: como um produto pop de exportação que parecia subverter milagrosamente a ordem mundial, situando na vanguarda o que se imaginava vir na rabeira, no centro o que deveria ser periférico. Aquela seleção de camisa amarela fez pelo futebol o que “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez, tinha feito três anos antes pela literatura.

É claro que, mais do que analisar fatos históricos, o que estou tentando fazer aqui é dar conta de um mito. Sem deixar de ser verdadeira, a narrativa de afirmação popular que está na origem do jeito brasileiro de jogar futebol é essencialmente mítica. A excelência da seleção de 1970, com sua avassaladora sequência de vitórias documentada em videoteipe, também não cabe inteira no domínio dos fatos – da mesma forma que nele não cabe o carro de Penélope Charmosa. Tal aspecto mitológico condena todas as seleções brasileiras desde então, e provavelmente para sempre, à comparação injusta com uma equipe de semideuses. Não será diferente com Neymar e seus companheiros, a quem desejo toda a sorte do mundo. Vão precisar dela.

2 Comentários

  • Sérgio Karam 31/05/2014em11:44

    Xará: você é craque mesmo! Comparar a seleção brasileira de 70 com Cem Anos de Solidão, nos termos em que você o fez, foi uma jogada genial como a de um – sei lá – Tostão. Grande abraço!
    Valeu, meu caro. Abração.

  • Gerson Maia 03/06/2014em02:10

    Sérgio, você já leu “Febre de Bola”? O que achou do livro?
    Sim, gosto muito.