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Pequeno sertão

03/08/2007

— Mire veja: a senhora por demais não espera. Assunto pouco do meu querer. Informação que pergunto: passasse por aqui, deve de, um homem alto; sorridente, cidadoso? A senhora visse; visto? Homem como se alongado no entender das coisas, com ares de senhoroagem? A pois, a senhora diga: tendo ou não vendo, aonde foi? Para essas bandas ele mais que por onde veio; desconfio.

A senhora tolere o meu perguntar; de susto, assusto. Careço de amarrar uma conversa, começada mais ele. Eu em só falava, ele demais ouvindo. Haveramente careço de encontrar esse um, dona. A senhora veja: dou perigo de vida matada, minha ou dele, se não emendar meu contado. Deus me tenha! Explico.

A ele dei de narrar, eu em mim tudo dizendo, por mor de ele anotar, rabisco tisco, num caderninho, o risco da minha fala. Aí pois, empolguei. E tive uma decisão: por gosto do meu bem contar, e fisgar no buque-buque do enredo, achei por melhor esconder, lá dele, o principal da matéria. Apego fiz, no meu bom desfecho de trama; e omiti sabendomente. Resulta o quê? As coisas são como que foram. E digo:

Quer mais? Aqui está.

A deixa, que eu vinha esperando há algumas semanas, veio agora, com o debate sobre o grandíssimo “Grande sertão: veredas” que se alastrou nos comentários da nota anterior. O pequeno conto chamado “Cor-de-Rosa”, que o escritor pernambucano-paulistano André Laurentino publicou na revista “Entretanto” e em seu blog, imagina o que aconteceria se Riobaldo não tivesse concluído sua história, interrompida pela partida abrupta de seu culto interlocutor antes que o sentido final se desvendasse. O narrador está aflito para desfazer o mal-entendido, corrigir a obra-prima.

Não, Laurentino – autor do romance “A paixão de Amâncio Amaro” (Agir, 2005) – não é um epígono de Rosa. O apuro técnico do pastiche é coisa fina, uma exigência do efeito cômico que o conto procura. E acha.

32 Comentários

  • Marcelo Moutinho 03/08/2007em19:21

    O André é um ótimo escritor. Recomendo o romance dele, “A paixão de Amâncio Amaro”

  • Nelson 03/08/2007em22:22

    Acabo de voltar do blog. Uma idéia divertida. Boa dica, sergio.

  • josef mario 04/08/2007em07:51

    Companheiro sergio rodrigues
    Eu, josef mario, devo dizer com a sinceridade que me é peculiar, que este post atual do companheiro, apesar de oportuno e interessante, teve como origem uma opinião jumentícia e asnática da companheira elaine, no post anterior, sobre o livro GSV do companheiro guimarães rosa.
    Veja o companheiro sergio rodrigues que este fato repete o que ocorre, em todos os ramos de atividade, no brasil dos nossos dias. Somente os beócios e ignorantes com as suas declarações de inspiração intestinal conseguem chamar a atenção e levantar a audiência, como novamente ficou aqui comprovado.
    Muito obrigado.

  • LuizFernandoGallego 04/08/2007em08:25

    O comentário acima do auto-intitulado “companheiro” (de quem?) ‘Josef Mario’ é que parece ter inspiração no órgão que ele citou e é o que consegue chamar a atenção pela escatologia, grosseria e dificuldade de aceitar opiniões divergentes da própria que – se o jogo fosse este, eu – e outros que já se manifestaram antes nas discussões da nota anterior – consideraríamos que a “sinceridade” mal-educada é que visa levantar a audiência para suas pobres idéias(?) que não conseguem argumentar e discutir opiniões: gosto também se discute, mas discutir não é pontificar em pretenso julgamentos (rimando com “jumentos”) “intestinais” como o que acusa em terceiros sem olhar para o próprio rabo: seu nickname Josef Mario é de inspiração em Josef Mengele?

  • josef mario 04/08/2007em09:52

    Companheiro LuizFernandoGallego
    Eu, josef mario, devo dizer que não mereço, porém, agradeço penhorado tantos elogios sinceros feitos pelo companheiro à minha humilde pessoa. Quanto ao meu nickname que também é meu nome de batismo, devo esclarecer ao companheiro que josef é uma homenagem ao grande companheiro e líder bolchevique – josef stálin. Quanto a mário, possivelmente deve ser uma lembrança singela de minha mãe a um centro-avante que jogou no olaria na década de 20 e que eu, josef mario, acredito que seja o meu verdadeiro pai biológico.
    Muito obrigado.

  • Kleber 04/08/2007em11:02

    Guimarães encontrou uma solução tão genial pra relacionar nossa tradição literária com tudo que de mais moderno existia então na literatura mundial que virou um tremendo problema pra quem surgiu depois dele. Meio como Borges na Argentina. Mas, com todo respeito e admiração, é preciso contorná-los e seguir em frente.

  • Sirio Possenti 04/08/2007em11:27

    “Haveramente” e “começada mais eu” denunciam que não se trata de um legítimo Guimarães Rosa.

  • Sirio Possenti 04/08/2007em11:29

    Ninguém citou o livro do Willi Bolle sobre Grande Sertão. Achei estranho.

  • F. C. Johns 04/08/2007em11:56

    É impressão minha ou o João Guimarães Rosa tá a cara do Odorico Paraguaçu?

  • C. Soares 04/08/2007em15:44

    Caro Rafael,

    Discordância sim, desavença jamais! 🙂

    No entanto, vale lembrar alguns estudos que acontecem por aí a respeito deste fabuloso livro.

    Ano passado, na mesa redonda que a ABL promoveu (coordenação de A. C. Secchin) em homenagem aos 50 anos de GS:V, assisti a três apresentações magistrais sobre a obra prima de JGR.

    O professor José Maurício Gomes de Almeida apresentou certas interseções entre as obras de Machado de Assis e Guimarães Rosa. Interessante para os que conhecem a opinião no mínimo crítica (dizem que depois mudou) do segundo em relação à obra do primeiro.

    A querida amiga Maria José de Queiroz abordou, sob o tema “Guimarães Rosa: muito antigo e muito moderno”, um verdadeiro caleidoscópio de referências e correlações em que até J. F. Cortázar foi “linkado”.

    Por fim, me impressionou muito a apresentação da professora Walnice Galvão (soube que trabalhava em uma edição crítica de GS:V) sobre um estudo realizado na USP a partir das anotações JGR. Apresentou-nos toda a “lógica matemática” desenvolvida pelo autor para formar seus neologismos.

    Rosa antes de escritor era um matemático. Poderia ter sido um ótimo desenvolvedor de software. 🙂

    Vale a pena, aos interessados, buscarem estes trabalhos.

  • C. Soares 04/08/2007em15:55

    Relembrando…

    http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from%5Fday=&from%5Fmonth=&from%5Fyear=&infoid=4476&query=advsearch&search%5Fby%5Fauthorname=all&search%5Fby%5Ffield=tax&search%5Fby%5Fheadline=false&search%5Fby%5Fkeywords=any&search%5Fby%5Fpriority=all&search%5Fby%5Fsection=1%2C536%2C2%2C5%2C6%2C7%2C8%2C45%2C9%2C540%2C10%2C11%2C12%2C13%2C545%2C14%2C467%2C15%2C16%2C17%2C537%2C18%2C19%2C20%2C21%2C22%2C23%2C24%2C569%2C25%2C538%2C26%2C27%2C28%2C573%2C29%2C30%2C31%2C32%2C479%2C480%2C481%2C482%2C483%2C484%2C485%2C486%2C487%2C488%2C489%2C490%2C491%2C492%2C493%2C494%2C33%2C34%2C572%2C453%2C550%2C454%2C455%2C543%2C456%2C457%2C458%2C534%2C459%2C35%2C558%2C559%2C560%2C561%2C562%2C563%2C446%2C472%2C473%2C474%2C475%2C525%2C447%2C476%2C519%2C477%2C478%2C526%2C448%2C495%2C496%2C520%2C497%2C498%2C499%2C527%2C449%2C500%2C521%2C501%2C502%2C503%2C528%2C450%2C504%2C522%2C505%2C506%2C507%2C529%2C451%2C509%2C510%2C511%2C512%2C513%2C530%2C452%2C515%2C524%2C516%2C517%2C518%2C531%2C36%2C539%2C37%2C38%2C535%2C544%2C39%2C40%2C41%2C42%2C557%2C460%2C461%2C462%2C463%2C464%2C465%2C466%2C43%2C44%2C565%2C566%2C567%2C568%2C570%2C571%2C574%2C576%2C368%2C369%2C370%2C371%2C372%2C548%2C549%2C552%2C553%2C554%2C555%2C556%2C373%2C374%2C375%2C376%2C377%2C378%2C379%2C380%2C381%2C382%2C383%2C384%2C445%2C386%2C387%2C388%2C389%2C390%2C391%2C392%2C393%2C394%2C395%2C396%2C397%2C398%2C399%2C400%2C401%2C402%2C403%2C404%2C405%2C406%2C407%2C408%2C409%2C410%2C411%2C412%2C413%2C414%2C415%2C416%2C417%2C418%2C419%2C420%2C421%2C422%2C423%2C424%2C425%2C426%2C427%2C428%2C429%2C430%2C431%2C432%2C433%2C434%2C435%2C436%2C437%2C438%2C439%2C440%2C441%2C442%2C443%2C444%2C468%2C471%2C470%2C469%2C532%2C533%2C541%2C542%2C575&search%5Fby%5Fstate=all&search%5Ftext%5Foptions=all&sid=453&text=exposicao+50+anos&to%5Fday=&to%5Fmonth=&to%5Fyear=

  • Pedro Correia - CE 04/08/2007em16:06

    Pelo modo como se apresenta, este é um texto assumidamente cômico. Claro que não é um “legítimo Guimarães”, como diz aí em cima o Sirio. E nem poderia ser. Ou entendi tudo errado?

  • Thiago Maia 04/08/2007em21:18

    No livro Vencecavalo e o outro povo, livro (redundantemente brilhante) de contos meio entrelaçados, em um curto trecho, em pouquíssimas páginas, João Ubaldo Ribeiro cria uma riquíssima alusão irônica da escrita de João Guimarães Rosa. Além disso, a personagem principal, sim, a personagem principal de Viva o povo brasileiro é homônima (de batismo, não de apelido) de uma das principais personagens de Rosa.
    Acho o segundo fato irrelevante e li não sei onde que o João Ubaldo sente “ojeriza” pela obra do João Rosa.
    A propósito, ambos são publicados pela Nova Fronteira, mas ainda este ano parte da ficção do João Ubaldo passará a sair pelo Alfaguara (Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro).

  • Maciel 04/08/2007em22:00

    Caro Sérgio

    Por que não ampliar a provocação e pedir comentários dos livros subestimados?

    Maciel

  • João Concliz, de Catas Altas da Noruega, Minas Gerais 05/08/2007em09:05

    Grande Sertão: Veredas, As mil e uma noites, O velho e o mar, Dom Quixote, A divina comédia, Guerra e paz, As viagens de Gulliver, Hamlet, Otelo, Metamorfose, A Odisséia e A Ilíade, de Omero , Crime e castigo…e “outros”…os livros mais superestimados da literatura mundial!!!!

    (fonte: Círculo do Livro da Noruega)

    “Grande Sertão :Veredas entre os melhores livros da literatura mundial ”

    Grande Sertão: Veredas, do renomadíssimo escritor Guimarães
    Rosa, foi a ÚNICA OBRA BRASILEIRA escolhida em pesquisa organizada pelos editores do Círculo do Livro da Noruega.

    A decisão em realizar essa pesquisa faz parte de uma campanha para incentivar a leitura de clássicos da literatura mundial contra o apelo da televisão, vídeo e dos jogos de computador.

    Entre os 100 escritores dos 54 países que participaram da votação estavam Salman Rushdie, Milan Kundera, John Le Carre, John Irving, Nadine Gordimer, Carlos Fuentes e Norman Mailer.

    Cada um dos autores elegeu dez trabalhos considerados os melhores e mais importantes livros da literatura
    mundial.

    Dom Quixote, obra-prima de Miguel de Cervantes, foi o grande vencedor, com mais de 50% dos votos do segundo
    colocado, Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust.

    A história de Dom Quixote, um cavaleiro que vive entre um mundo de fantasia e a realidade, superou obras de outros gênios da literatura mundial, como William Shakespeare e Homero.

    Ao anunciar o prêmio, em Oslo, o escritor nigeriano Ben Okri, ganhador do Nobel de Literatura, disse que Dom Quixote é “um romance que todos devem ler antes de morrer.”

    A literatura brasileira foi brilhantemente representada por GUIMARÃES ROSA, com Grande Sertão: Veredas, a história
    do sertão, seus costumes e sua típica paisagem, cenário do desenrolar da trama que envolve as duas personagens
    principais, Diadorim e Riobaldo.

    Conheça algumas obras da literatura mundial:

    Decameron, de Giovanni Boccaccio (1313-1375), Itália.

    O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Bronte (1818-1848),Inglaterra.

    A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321), Itália.

    Grande Expectativas, de Charles Dickens (1812-1870),Inglaterra.

    Crime e Castigo, de Fyodor M. Dostoievski (1821-1881),Rússia.

    Medéia, de Euripides (480-406 a.C.), Grécia.

    Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1880), França.

    O Amor no Tempo do Cólera, de Gabriel García Márquez
    (nascido em 1928), Colômbia

    Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), Alemanha

    Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (1880-1967),Brasil

    O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway (1899-1961), Estados
    Unidos

    A Odisséia; A Ilíada, de Homero (700 a.C.), Grécia

    Ulisses, de James Joyce (1882-1941), Irlanda.

    Zorba, O Grego, de Nikos Kazantzakis (1883-1957), Grécia.

    1984, de George Orwell (1903-1950), Inglaterra

    Metamorfose, de Kafka (1883-1924), Atual República Tcheca

    Em Busca do Tempo Perdidode Marcel Proust (1871-1922),França.

    Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago (nascido em
    1922), Portugal.

    Hamlet, KingLear, Othello, de William Shakespeare (1564-1616),Inglaterra

    As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift (1667-1745),Irlanda

    Guerra e Paz, de Leo Tolstoy (1828-1910), Rússia

    As Mil e Uma Noites(700-1500), Índia/Irã/Iraque/Egito”
    (fonte: Círculo do Livro da Noruega)

    É…o Guimarães Rosa está com tudo e não está prosa…

    O homem está com a bola cheia, universalmente falando…

  • Rafael 06/08/2007em11:34

    Como não costumo, aos finais de semana, navegar pela internet, acabei perdendo o fio da meada da polêmica sobre o Grande Sertão: Veredas. Vou aproveitar o ganho deste novo tópico, para aprofundar meu argumento.

    Ao defender a tese de que o GSV é um livro superestimado (superestimado é diferente de ruim, lembrem-se), sei que muitos me tomaram como uma espécie de Hermógenes, a própria encarnação do mal. Entretanto, sou humano apenas, conheço as limitações do meu julgamento; não alimento a pretensão de proferir verdades absolutas.

    Dito isto, vamos lá. Alguns aqui assinalaram (sobretudo o Bemveja e o André Laurentino) o rico quadro de referências literárias e filosóficas que Guimarães Rosa espalhou ao longo da narrativa. Um leitor culto encontrará no GSV reminências do Vedas, da Divina Comédia, do Fausto goetheano, de Plotino, da filosofia de Platão. Nenhum autor brasileiro, nem Machado de Assis, foi tão ambicioso na execução de uma obra literária; ninguém, no país, arriscou-se tanto a fazer um obra total, que encerrasse dentro de si tamanha riqueza de temas mundanos e transcedentais. Guimarães Rosa sabia que o sucesso do seu empreendimento exigia a criação de um mito literário, pois somente os mitos carregam consigo tamanha a riqueza de significados. Um personagem literário comum, concebido para mimetizar uma pessoa de carne e osso, não daria conta do recado. Riobaldo foi meticulosamente desenhado para ser um mito.
    Aqui é o problema do GSV. Embora manifestasse pouco apreço pelas construções cerebrinas, opondo a elas as intuitivas (sempre que perguntado, rejeitava o paralelo do GSV com Ulisses, considerando o último um livro demasiadamente cerebral), Guimarães Rosa elaborou sua obra-prima com espírito de engenheiro. Cada peça foi rigorosamente desenhada para montar um mito: a covardia inicial de Riobaldo, que precisa ser vencida; a ambivalência de Diadorim; o amor impossível, próprio dos heróis trágicos; o pacto com o diabo; a metamorfose de Riobaldo em Urutu-Branco; o caráter maligno de Hermógenes; a travessia pelo Liso do Sussuarão; o episódio do canibalismo. Não há passagem do GSV que não seja simbólica, não há episódio que não remeta a alguma lenda ou tradição antiga. Por mais que desgostasse do paralelo, Guimarães Rosa laborou com o mesmo rigor de James Joyce, procurando dar a cada cena um feixe de significados precisos.

    Esse rigor, por mais admirável que seja, confere uma certa artificialidade ao livro. Nenhum mito literário foi construído com o propósito de ser mito; transformou-se em mito por decorrência natural da sua riqueza constitutiva. Cervantes, quando escreveu o Quixote, tinha o propósito inicial de satirizar os livros de cavalaria e não o de criar o símbolo da loucura idealista que arrosta a dura realidade do mundo. Homero fez um narrativa de guerra, cheia de episódios sangrentos e com um personagem irascível, Aquiles, cuja fúria o transformou num mito. Hamlet, criado a partir de uma lenda antiga, antes de ser o protótipo do intelectual tomado de dúvidas e incapaz de agir, foi um personagem teatral, concebido para provocar comoção no público. Riobaldo, por outro lado, foi calculado, desde o início, para ser um mito literário. Por isso, quem ler GSV procurando nele símbolos literários, encontrará uma miríade deles.

    Um paralelo clarificará minha crítica. Basta imaginar um romance escrito por um discípulo de Freud e cujos personagens sejam construídos à luz das teorias freudianas. O crítico que fizer uma leitura psicanalítica deste romance encontrará uma riqueza de matizes que o deixará impressionado: os sonhos do protagonista, sua relação conflituosa com o pai, a atração inconsciente pela mãe, as obsessões nutridas por ele, os desejos recôndidos. Com a leitura psicanalítica, o crítico verá nos personagens desse romance um psicologia rica e profunda. Pergunto, todavia: um personagem meticulosamente construído com as peças fornecidas pela psicanálise é realmente um personagem rico e profundo? Não seria ele, na realidade, uma caricatura, tão mais falsa quanto mais de acordo com a psicanálise? Afinal de contas, as teorias de Freud, embora expliquem muita coisa sobre a alma humana, são um reducionismo da realidade, como todas as teorias. Lido à luz da psicanálise, o personagem é riquíssimo; porém, falso. O mesmo acontece com os personagens concebidos segundo o marxismo: eles, examinados do ponto de vista sociológico, aparentam uma riqueza de matizes; porém, são personagens falsos. É o caso, por exemplo, do Paulo Honório: sua psicologia é a de um proprietário de terras: explorador, mesquinho, cruel, arrogante, insensível. São Bernardo deu luz a muita análise sociológica; no entanto, seus personagens são, malgrado todo esforço de verossimilhança psicológica empenhado por Gracialiano Ramos, caricaturas.

    Mire e veja: Riobaldo é a caricatura de um mito. Falta-lhe, por isso, estofo para se tornar, ele próprio, um mito. Tal, aliás, é a mesma limitação dos personagens de Tolkien, cujo Senhor dos Anéis foi engendrado com a mesma ambição que moveu Guimarães Rosa a escrever GSV: a ambição de criar um mito literário.

  • Sirio Possenti 06/08/2007em12:50

    Rafael

    Acho sua tese completamente equivocada. Como saber se JGRosa queis construir um mito? (ou uma personagem mitológica?). Nada a ver…

  • Sirio Possenti 06/08/2007em12:50

    “quis”, claro…

  • Rafael 06/08/2007em13:25

    Sirio,

    Você achar minha tese equivocada parece-me justo e louvável. Querer, contudo, fulminá-la com três palavras (“nada a ver”) não é justo nem louvável. Desenvolva, por favor, seu contra-argumento.

    Ao entrevistador Günter Lorenz disse Guimarães Rosa sobre Riobaldo:

    “Gostaria de acrescentar que Riobaldo é algo assim como Raskolnikov, mas um Raskolnikov sem culpa, e que, entretanto, deve expiá-la. Mas creio que Riobaldo também não é isso. Melhor, é apenas o Brasil.”

    Continuo achando que ele queria criar um símbolo, uma alegoria, um mito.

  • Clodovil 06/08/2007em14:07

    Sabia, sabia.

    Riobaldo é boi preto. Digo isso eu, pois “boi preto conhece boi preto”.

    O Reinaldão era mulher coisa nenhuma. O Riobaldo inventou essa história de mulher-fêmea-vestida-de-homem para que sua fama não corresse o sertão.

    Esse negócio de bando jagunços suados debaixo do sol do sertão lembra-me uma sauna gay.

  • Pedro Correia - CE 06/08/2007em14:30

    Ah, até que enfim uma lufada de bom humor.
    Ufa.
    Estes teóricos em busca de Dantes brasileiros já estava cansando.

  • Uma 06/08/2007em14:41

    Caro Sérgio,
    Com esses teóricos de beira-de´strada seu blog está ficando chatíssimo! Não dá para reduzir os caracteres por comentário? Assim os loquazes rapazes são forçados a reduzir seus lampejos abrilhantados por uma luz fraquinha…

    Uma T.

  • Clodovil 06/08/2007em15:18

    Meu caro Rafael, tiraram o sarro de você porque você quis discutir a sério. Fiquei com pena de você, garoto esforçadinho da classe.

    Minha querida mamãe ensinou-me como usar a inteligência. Vou explicar para você:

    a) Sempre falar de sexo

    b) Falar de sexo em tom de fuxico

    c) Usar palavras de coluna social, de programas populares da TV, tipo Gugu

    d) Não escrever parágrafos de mais de três linhas (dá preguiça ler…)

    Então, bofe, entenda: quando falar de livro, trate o assunto da mesma forma como o meu amigo, Leão Lobo, trata fofoca.

    Viu só, querido, meu comentário sobre o bofe do Riobaldo rendeu mais sucesso que o seu. Até o fofo do Pedro Correia entendeu.

  • Pedro Correia - CE 06/08/2007em17:21

    Caro Clô,

    Assim como o parlamentar que inspira seu codinome, você tem o péssimo hábito de bater em quem está do seu lado.

    Nem um nem outro apredem, pelo visto.

  • Clodovil 06/08/2007em17:40

    Pepê,

    A gente bate para ver se o outro gama.

  • clara lopez 06/08/2007em18:10

    Caro Rafael, achei bom demais o seu comentário, e acho generosidade intelectual se dar ao trabalho de alinhar tantos argumentos convincentes num espaço tão refratário à reflexão mais profunda. De todo modo, você tem argumentos muito fortes, e embora eu possa concordar com a idéia da ‘criação de um mito’ por parte de ambos (GR e Tolkien) isso não desqualifica minimamente os livros (não acho que você os esteja desqualificando), porque existe também o pacto que se estabelece entre o leitor e a obra, e acho que Rosa (assim como Tolkien) consegue ‘convencer’ seu leitor a participar daquela invenção. Ou seja, mesmo sendo um ‘projeto pensado para ser mito’, eu topo, aceito e gosto do que ele me oferece do mesmo jeito.

  • Mindingo 06/08/2007em19:37

    O Rosa ele próprio ou seu seguidor, grande coisa. Imaginem se o Dostoiévski escrevesse de maneira chatíssima, arrevesada e pretensiosa como esses cabras. Mas por que o faria, se tem o que dizer? Esse Joyce, esse Guimarães, esses Whitmans e outros “artesãos da palavra” são os ídolos dos tolos e mestres numa só arte: a de enganar os trouxas.

  • Anderson 06/08/2007em19:43

    Rafael,

    Seu raciocínio tem o problema do criacionismo da obra-prima. Como se houvesse um sujeito indeterminado e divino, com boas intenções e uma imensa genialidade, por trás dos outros textos que você citou como mitológicos. E Tolkien e Rosa são, olha só, homens… de quem a gente conhece até os traços, pq, nossos contemporâneos, nos deixaram fotos… Que pena, incapazes de criar mitos… Só para te lembrar, o mito de Fausto, até agora entronizado na obra de Goethe, é o mote de Grande Sertão: Veredas. Rosa não quis criar nada, ele, como tantos outros escritores, se valeu de um mito preexistente, para elaborar sua narrativa sobre ele. E foi, a meu ver, mais que bem sucedido.

  • Sirio Possenti 06/08/2007em21:57

    São personagens. Não são mitos. Elementar.

  • pérsia 07/08/2007em09:05

    O comentário de Rafael nada elementar, ao contrário. Claro o que disse sobre mito e personagem, personagem criada sob o maior número possível de referências, sem uma ponta solta, pra onde se cavar achar mel, uma personagem (desculpas pela infâmia) pra sair da história e entrar na vida.
    Agora fico pensando, o quanto deve ter sido difícil para GR (genial) colocar um ponto final naquelas centenas de páginas.

  • Rafael 07/08/2007em12:09

    Sirio: é elementar que, diante dessa sua indisposição para argumentar, sou obrigado a seguir, em relação o seu comentário, o conselho de Virgílio a Dante: “guarda e passa“.

    Clara: obrigado por se interessar pelos meus argumentos. Parece-me que um blog de literatura é foro para se discutir literatura; o Sérgio, acredito, deve prezar aqueles que se dispõem a debater seriamente os assuntos em pauta; muitos que aqui freqüentam, quero crer, gostam de trocar idéias, de sugerir teses. Há, no entanto, aqueles que consideram o intercâmbio de idéias uma coisa chatíssima. Contentam-se com um bate-papo transado, descontraído: diálogos de comercial de cerveja. “Non ragionam di loro, ma guarda e passa

    Sim, Clara, não pretendo desqualificar o livro; longe de mim tal pretensão. Destaco apenas que Guimarães Rosa foi menos espontâneo na construção do Riobaldo e na concepção do GSV do que alardeava. Ele, profundamente religioso e supersticioso, dava enorme importância à intuição, evidente influência das idéias platônicas, a ponto de sugerir que o livro teria sido psicografado (ponto bem lembrado pelo Cláudio Soares no tópico anterior). No livro Primeiras Estórias, há um conto emblemático: “Pirlimpsiquice”. Nele, conta-se a história (perdôe-me, João Rosa, o agá inicial; não consigo suprimi-lo) de um grupo de estudantes que vão encenar uma peça teatral; como um dos atores acaba faltando no dia da apresentação, os estudantes são obrigados a improvisar e aí acontece uma mágica: a peça improvisada revela-se muito superior à ensaiada e a platéia vai ao delírio.

    Guimarães Rosa dava a entender que seu processo criador era completamente espontâneo e que suas obras eram, no fim das contas, o resultado de um improviso. O Grande Sertão: Veredas não é fruto de um improviso: ele foi montado sobre uma rígida base de referências literárias, com a precisão de um engenheiro. Tudo foi calculado para ressoar fábulas ancestrais. Ouvi dizer que há, nos rascunhos do GSV, vários apontamentos remetendo a Dante, a Platão, a fábulas célticas.

    Anderson: não estou supondo a genialidade infusa dos criadores dos mitos. Cervantes foi, tanto quanto Guimarães Rosa, um homem, um ser humano, com seus defeitos e virtudes. Nenhuma obra literária, qualquer que seja ela, é isenta de defeitos. Algumas, todavia, são mais bem sucedidas e acabadas que outras e, por isso, resistem ao teste do tempo. Guimarães Rosa tinha a pretensão, própria dos gênios, de ombrear-se aos grandes criadores. O GSV é o livro mais ambicioso dos quantos foram escritos no Brasil. Por isso, digo e repito: para concretizar sua ambição, Guimarães Rosa estruturou todos os episódios do seu principal livro sobre referências literárias bem sucedidas.

    Em tempo: o mito do Fausto a anterior a Goethe, que o aproveitou. Grande parte das peças de Shakespeare foram baseadas em histórias antigas. A história da literatura é, de certa forma, a história do plágio.

    Pérsia: você foi direto no ponto. Não sei quantos aqui assistiram o documentário “O Poder do Mito” de Joseph Campbell. Quem viu o documentário sabe que Joseph Campbell assessorou o George Lucas na concepção e filmagem de Star Wars. Ele explica no documentário como os personagens de Star Wars foram desenhados para preencher o perfil mitológico: o conceito do “lado negro da força”; o Jedi, que é uma espécie de cavaleiro (assim como Riobaldo é jagunço, observe); o aprendizado de Luke Skywalker com Yoda (um rito de passagem); a revelação de que Luke Skywalker é filho de Dart Vader. Guimarães Rosa segue a mesma receita.

    Clodovil: agredeço imensamente o conselho. Mas, sinceramente, em vez de falar sobre sexo, prefiro fazer. Minhas saudações à sua mãe e ao seu amigo, Leão Lobo.

  • Bemveja 09/08/2007em14:13

    Primeiro, considero o trecho do Laurentino interessante. Há um excesso de aliterações e assonâncias e alguns desvios etimológicos (“haveramente”, conforme citado acima). Nada, porém, que inviabilize autor. Muito inteligente o início do texto por “mire veja” (reveja-me). O texto lembra algumas paródias do Eco no “Diário Mínimo”.

    Rafael, mitos não se criam, pelo menos não desde o Romantismo, o último período formativo da literatura. Guimarães Rosa foi tão deliberado ao escrever o GSV quanto Shakespeare, Cervantes et al.

    Grandes escritores nunca são meros canais de uma inspiração numinosa, isso é um distanciamento a que os autores recorrem de forma inteiramente artificial.

    Finalmente, vai por mim: de vez em quanto aparecem comentários aqui buscando limitar e rebaixar o nível da discussão. Ignore. Você não tem culpa de saber mais do que outras pessoas e deve fazer uso desses recursos sempre que achar necessário.