O Primeira mão de hoje é diferente: traz trecho de um livro ainda não publicado no Brasil. Everyman, o último lançamento do americano Philip Roth (Houghton Mifflin Company, 184 páginas, US$ 16,32 na Amazon.com – a tradução é minha), é simplesmente a novela mais crua que já li sobre envelhecimento e morte. Por suas páginas sopra um vento frio, e sopra tão forte que me afetou o juízo e me fez ceder a este clichê. O título – tirado de um auto medieval sobre a visita da Morte a Everyman – sugere que Roth vai fazer de seu protagonista sem nome o Homem Comum, o cidadão médio. Parece ter sido essa a intenção, mas não é bem o que ocorre. O everyman aqui é por demais americano, urbano, agnóstico, sexualmente atraente e habituado aos confortos da classe média alta – enfim, um personagem de Roth – para se qualificar como homem universal. O fato de seu plano de saúde de primeira qualidade fazer inveja a 99% da população da Terra, porém, não tira pungência da meticulosa descrição dos problemas médicos em fila que vão roubando do personagem, naco por naco, a sua vida. Que essa vida já não fazia muito sentido antes do que Roth chama de “massacre” fica cada vez mais claro à medida que as páginas avançam, o que contribui para deixar aquele vento mais frio ainda. Everyman é um livro estranho. Assimétrico, insatisfatório, inconclusivo, quase que se pode dizer inacabado, parece querer espelhar a própria trajetória humana entre nascimento e morte. E de certa forma consegue.
No trecho abaixo o protagonista, aposentado como diretor de arte de uma grande agência de publicidade, começou a dar aulas de pintura para gente da sua idade a fim de matar o tempo e está às voltas com uma aluna que, sofrendo de dores agudas na coluna vertebral, deixa o ateliê e, a convite dele, vai se deitar em sua cama.
– Você pode continuar deitada aqui se quiser – ele disse para Millicent Kramer depois que ela bebeu um pouco de água.
– Não posso ficar deitada aqui o tempo todo! – ela choramingou. – Simplesmente não posso mais! Eu era tão ágil, tão ativa… Sendo mulher do Gerald, eu tinha que ser. Íamos a todos os lugares. Eu me sentia tão livre. Fomos à China, percorremos a África inteira. Agora eu não posso nem pegar o ônibus para Nova York, a menos que esteja entupida de analgésicos. E eu não sou boa com os analgésicos, eles me deixam completamente amalucada. E mesmo assim, quando eu chego lá, a dor já voltou. Ah, eu lamento tudo isso. Lamento terrivelmente. Todo mundo aqui tem suas provações. Não há nada de especial na minha história e lamento jogar esse peso nas suas costas. Você provavelmente tem sua própria história.
– Uma compressa ajudaria?
– Sabe o que ajudaria? – ela disse. – O som daquela voz que desapareceu. O som do homem excepcional que eu amei. Acho que eu agüentaria tudo isso se ele estivesse aqui. Mas sem ele eu não consigo. Nunca o vi fraquejar uma vez sequer na vida, até que veio o câncer e o esmagou. Não sou o Gerald. Ele concentrava todas as suas forças e encarava, concentrava todo o seu ser e encarava o que precisasse ser feito. Mas eu não consigo. Não consigo mais agüentar a dor. Ela supera tudo. Às vezes parece que não vou suportar nem mais uma hora. Eu digo a mim mesma para ignorar, que não importa tanto. Digo para mim mesma: “Não leve em conta. É um fantasma. É um aborrecimento, nada mais que isso. Não lhe reconheça o poder. Não coopere com ela. Não morda a isca. Não corresponda. Lute. Enfrente na marra. Ou você está no controle ou ela é que está: a escolha é sua!” Eu repito isso para mim mesma um milhão de vezes por dia, como se fosse o Gerald falando, e aí, de repente, a dor fica tão horrível que eu tenho de me deitar no chão no meio do supermercado e todas as palavras perdem o sentido. Ah, eu lamento, de verdade. Detesto lágrimas.
– Todos detestamos – ele respondeu – mas choramos do mesmo jeito.
– Esse curso tem significado tanto para mim – disse ela. – Passo a semana inteira esperando pela aula. Me sinto como uma garotinha – confessou, e ele viu que ela o fitava com uma confiança infantil, como se fosse mesmo uma criança que estivesse sendo posta para dormir e ele, como Gerald, pudesse endireitar qualquer coisa.
– Você tem algum dos seus remédios com você? – perguntou.
– Já tomei um hoje de manhã.
– Tome outro.
– Eu tenho que ter tanto cuidado com aqueles comprimidos…
– Entendo. Mas faça um favor a você mesma e tome outro agora. Um a mais não pode fazer tão mal, e vai tirar você do buraco. Vai pôr você de volta diante do cavalete.
– Leva uma hora para fazer efeito. A aula já vai ter acabado.
– Você é bem-vinda para ficar e continuar pintando depois que os outros forem embora. Onde está o remédio?
– Na minha bolsa. No ateliê. Ao lado do meu cavalete. Uma velha bolsinha marrom com a alça meio gasta.
Ele a trouxe para ela, e com o que restava de água no copo ela tomou o comprimido, um remédio opiáceo que calava a dor por três ou quatro horas, grande e branco, em forma de losango, e que a fez relaxar assim que o engoliu, antecipando o alívio. Pela primeira vez desde o início do curso, ele percebeu acima de qualquer dúvida como ela devia ter sido atraente antes que a degeneração de uma coluna vertebral envelhecida tomasse conta de sua vida.
– Fique deitada até começar o efeito – disse ele. – E aí venha se juntar ao grupo.
– Eu peço perdão por isso tudo – ela disse, quando ele já estava de saída. – É que a dor faz a gente se sentir tão só – e nesse instante sua fortaleza cedeu mais uma vez e ela rompeu em soluços, o rosto escondido nas mãos. – É tão vergonhoso.
– Não tem nada de vergonhoso nisso.
– Tem, tem – ela chorava. – Não ser capaz de tomar conta de você mesma, a necessidade patética de ser consolada…
– Nas circunstâncias, nada disso é nem remotamente vergonhoso.
– Você está enganado. Você não sabe. A dependência, a incapacidade, o isolamento, o pavor… é tudo tão tétrico e vergonhoso. A dor faz você ter medo de você mesmo. O absoluto estranhamento dela é terrível.
Ela tem vergonha do que se tornou, pensou ele. Está constrangida, humilhada, subjugada ao ponto de quase nem se reconhecer mais. Mas qual deles não estava? Todos sentiam vergonha do que tinham se tornado. Ele não sentia? Vergonha das mudanças físicas. Da diminuição da virilidade. Dos erros que o retorceram e dos golpes – tanto os auto-infligidos quanto os vindos do mundo exterior – que o deformaram. O que emprestava uma grandeza sinistra ao processo de destituição sofrido por Millicent Kramer – e, por contraste, fazia sua própria desolação parecer menor – era, claro, a dor intratável. Até mesmo aqueles retratos dos netos, ele pensou, aquelas fotografias que os avós espalham por toda a casa – era provável que ela já não lhes dirigisse um único olhar. Nada restava além da dor.
– Shhh – ele disse – shhh, fique calma – e retornou até a cama para segurar a mão dela mais uma vez antes de voltar para a aula. – Espere o analgésico fazer efeito e venha se juntar a nós quando estiver pronta para pintar.
Dez dias depois ela se matou com uma dose cavalar de soníferos.
13 Comentários
Fora do assunto: a maioria dos blogs individuais na Internet sofre de um mal terrível – serem muito mal escritos, o que não é o caso do Sérgio Rodrigues, cuja prosa é sempre de qualidade. Agora, encontro um outro blog (modestíssimo!) que me parece também muito bem escrito. Vale a pena dar uma olhada: http://ribeiroalmeida.zip.net/
Excelente… vale a pena comparar com o romance do Daniel Galera, as partes que falam de dor física (o parto da mulher do protagonista, ele pedindo para que o médico o costure sem anestesia, etc…)
Extremamente profundo, doloroso e verdadeiro. Humano, em resumo. O que gosto em Roth é justamente essa capacidade (perdida pela vastíssima maioria de escritores, inclusive – hélàs – os brasileiros) de manter-se no humano, no real, na carne. Roth não fantasia, não delira, não inventa: ele faz dos personagens carne como a nossa carne. De certa forma, do outro lado do Atlântico, há outro escritor que faz o mesmo: Ian McEwan. Porém Roth é ainda mais cruel, mais duro, machuca mais.
Gostei. Mas logo saquei o que viria por último, assim como um batedor de pênalti que “telegrafa” para o goleiro o canto em que vai chutar… Putz, me sinto péssima ao usar essa metáfora futebolística, mas paciência!
Em minhas mão chegaram dois livros que, sem querer, lí: Metamorfose-Franz Kafka e Manicômio-Patrick McGrath. Fiquei mal, muito mal. As doenças, descritas cruelmente nos romances fazem doer de maneira atroz
Tudo bem, eu concordo que literatura não precisa ser “edificante”, mostrar o lado bom da vida ou refletir sentimentos nobres, mas… pô, também não precisa ser deprimente, né? Quando comprei o “Portnoy’s Complaint” eu tinha uns vinte e poucos anos, e o tom levemente iconoclástico da obra foi perfeitamente adequado para a idade que eu tinha na época. Agora, que já estou prestes a dobrar o cabo da boa esperança (sou quase um sessentão), vou me poupar o suplício de ler o “Everyman”. De amarga basta a vida…
O ” Último Tango Em Paris ” aborda esse tema ( isto é , que para nós não há salvação ) com muito mais talento.
Nossa, Djalma. Aconteceu comigo que fiquei muito interessada nesse filme. Não tive oportunidade de ver no cinema. Um dia, anunciou na televisão. Fiquei esperando, “todaprosa” para ver o filme que, naturalmente, seria sobre dança(o que amo apaixonadamente). Qual não foi a minha surpresa ao ver do que se tratava o filme! Fiquei desalentada.
Concordo contigo, Givoanni. Apesar de ser um grande fã do Roth, de ter livro quase todos seus livros, acho um pouco estreito e limitado, tratando-se de alta literatura, um livro que retrata a crueza pela crueza e não se dá o trabalho de, nem que seja por alguns segundos, ver além dela. Mas não li o livro ainda.
Gostei muito.Roth escreve bem e conserva a narrativa interessante sem dixar de ser moderno.Demasiado humano ,estamos cercados de infelicidades numa ilha pequenas felicidades.
PEDRO CURIANGO,
Essa foi a mais inteligente sugestão que li nestas seções de NOMÍNIMO. Realmente o blog do Ribeiro (http://ribeiroalmeida.zip.net) é realmente excelente. Agradeço-lhe muito pela oportunidade poder lê-lo.
Lí recentemente, quatro livros que tratam de velhice e/ou morte (Memorias de mis putas tristes, Everyman, A Morte de Ivan Ilitch e A Viagem Vertical). Que os puristas canônicos me perdoem, mas o livro que mais me abalou foi o do Roth.
É o que trata o assunto mais “matter of factly”, deixando as implicações morais e espirituais quase que inteiramente por conta do leitor. O fato do autor retratar um americano de classe média alta não subtrai em nada da universalidade do livro. E mesmo que fosse o caso, qual será o perfil dos leitores, de qualquer forma?
Li agora o “Homem Comum”, o primeiro que li de Roth e confesso que não gostei. Achei muito, muito depressivo. Os fantasmas que assombram a velhice são reais, sem dúvida, mas o livro todo narra a visão e os sentimentos mais pessimistas que a idade traz consigo.
Senti algo parecido com o que sinto quando vejo um noticiário de TV; só desgraça quando há tantas coisas belas a serem faladas e mostradas.
Não é nem de longe um livro ruim, apenas não me agradou.