A palestra que o ficcionista e crítico argentino Ricardo Piglia deu esta semana em São Paulo (segunda-feira) e no Rio (quarta) durou pouco menos de uma hora. Pareceu durar dez minutos. Foi a primeira vez que as palavras do autor de “Respiração artificial” me chegaram pelos ouvidos, em vez de pelos olhos, e o ineditismo dessa experiência foi em si um princípio de revelação. Deu vontade de reler seus ensaios – como os de “Formas breves” e “O último leitor” – para investigar o papel do coloquialismo no peculiar embaralhamento pigliano de casos e anedotas com observações críticas penetrantes, que resulta numa espécie de milagre: um texto crítico que não precisa se refugiar no hermetismo ou na chatice para parecer profundo porque, ora, sabe que é. Naquela noite de quarta, enquanto tínhamos, eu e a Heloisa, o privilégio de jantar com o casal Piglia e usufruir de piadas que não haviam entrado na palestra, a seleção brasileira venceu a argentina por 2 a 0. Mas para mim ficou claro que, no campo da crítica literária, qualidades como clareza, humor e generosidade impõem ao Brasil uma derrota de goleada.
Intitulada “Romance e tradução”, a conferência do maior escritor argentino vivo (vídeo integral no site da Companhia das Letras) se baseou nas reflexões de um ensaio em andamento e teve como núcleo a investigação daquilo que, nos romances, não se perde na transposição de uma língua a outra – algo meio intangível que ele chamou com simplicidade de “energia ou emoção” (não me lembro de jamais ter visto tais palavras no discurso de um crítico). Em torno disso, nunca de forma gratuita, Piglia foi tecendo histórias divertidas sobre Gombrowicz, Borges e o primeiro tradutor chinês do Quixote – que nada sabia de espanhol – para concluir que, ao contrário do poeta, que escreve mergulhado em seu idioma materno e a rigor só pode ser lido nele, o ficcionista tem sempre em relação à língua uma posição de estrangeiro. Como se a matéria fundamental com que ele lida estivesse acima – ou abaixo – da língua, e precisasse ser traduzida para ela.
A melhor história da noite, para mim, rolou mais tarde, quando Piglia, entre garfadas de bacalhau, contou o caso de uma placa que viu um dia à beira de uma estrada mexicana: Está prohibido a los materialistas estacionar en lo absoluto. O que parece um irrespondível imperativo filosófico revela-se, via tradução, bem mais prosaico. Materialistas são motoristas de caminhão que transportam materiais pesados; en lo absoluto, uma locução adverbial gêmea da nossa “em absoluto”. Em português, uma placa dessas poria toda a graça a perder: “É terminantemente proibido aos caminhoneiros estacionar”. Eis um caso de humor trocadilhesco que, como sabia Paulo Rónai, é tão enraizado na língua que se aproxima da grande poesia. Mas é difícil imaginar alimento melhor para dois dedos de civilizada prosa.
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Estou saindo de férias. O Todoprosa voltará a ser atualizado no dia 2 de novembro. Até lá.
7 Comentários
O espanhol e o português são propícios à linguagem que carecemos para a nossa ignorância. Piglia encontrou, finalmente,um ponto em comum entre os latino-americanos.
Não vai aparecer por aqui nem pra comentar o Nobel?
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Não sei se alguém lê comentários aqui. Aviso: copiei e colei o texto ” Uma manhã na vida do poeta”, respeitando a devida fonte.Hoje é dia do poeta, pode espalhar, ninguém sabe.
Diretamente de Portugal, Galera vs. Cuenca. O prêmio Saramago sai hoje, e a disputa parece ser essa, entre Cordilheira e O Único Final Feliz para Uma História de Amor É um Acidente. Tem-se falado muito mais no Cuenca, o João Tordo, escritor português já premiado apostou nele assim como quase todo mundo, mas eu tenho um amigo que conhece alguém, que conhece alguém, que pode jurar que vai ser o Galera.
Nem o gaúcho, nem o carioca. Venceu a paulista. Andréa Del Fuego venceu o prêmio José Saramago 2011 com o Livro “Os Malaquias”. Li o livro, nem lembrei dela para o prêmio, pensei que fosse mais velha, mas de fato é um bom livro. No entanto, continuo achando que o Cordilheira do Daniel Galera é melhor.
Acho estranho este blog até hoje, não ter escrito uma linha sequer sobre romances de escritores contemporâneos como Luis Eduardo Mata e seu livro O Dia Seguinte, como também Miguel M. Abrahão e o seu A Escola:onde está um, estão todos, um clássico do romance histórico.