O que envelhece e perde vigor se torna solto e mais livre: quando o público do romance do século 19 se deslocou para o cinema, foram possíveis as obras de Joyce, de Musil e de Proust. Quando o cinema foi suplantado como meio de massa pela televisão, os cineastas do “Cahiers du Cinéma” resgataram os velhos artesãos de Hollywood como grandes artistas; agora que a televisão começa a ser substituída maciçamente pela web, valorizam-se as séries televisivas como forma de arte. Logo, com o avanço das novas tecnologias, os blogs e os velhíssimos emais e as mensagens de texto serão exibidos nos museus. Que lógica é esta? Só se torna artístico – e se politiza – o que caduca e está “atrasado”.
Esta iluminação do escritor e crítico argentino Ricardo Piglia, garimpada num texto que o Babelia publicou no último sábado, tem brilho tão intenso que provoca uma sensação de ofuscamento. Para dissipá-lo, seria necessário que Piglia desenvolvesse a ideia de que só pode haver arte no que é “atrasado” – o que ele, preso ao formato leve de um diário, não faz. Assim, resta-nos especular.
Vê-se logo que não se trata, como pode parecer à primeira vista, de um simples elogio da tradição ou de uma roupa nova para o velho mito do artista como alguém que antecipa o futuro e só pode ser compreendido pela posteridade (Van Gogh etc.). Trata-se, sim, de uma definição da própria arte. Mas que definição é essa?
A arte como um discurso que requer distanciamento histórico para ser apreciado (Shakespeare, em seu tempo, não gozava de mais prestígio intelectual que um autor contemporâneo de telenovelas)? Ou aquilo que só consegue se estabelecer em oposição ao sucesso de massa, que antes de mais nada precisa se dissipar (embora Tolstoi, entre outros, complique a equação)? Caso seja este o caso, não estaremos diante da reedição daquela velha dicotomia crítica – também caduca e “atrasada” – entre erudito e popular?
No fim das contas, somos obrigados a concluir que o trechinho de Piglia tem mais inspiração do que rigor. Dos exemplos que ele cita, dois – o da literatura modernista e o das séries televisivas de hoje – tratam de uma nova geração de obras, com novas e mais libertárias linguagens, surgida após o declínio de um formato rígido que se erigia como grande instituição; enquanto o outro exemplo, o dos fazedores-de-filme de Hollywood que jovens críticos franceses redescobriram como “autores”, apresenta um caso de grande arte entranhada no próprio formato rígido e institucionalizado, mas dependente de um olhar historicamente distanciado para finalmente se revelar. Balaio de gatos?
No primeiro caso, a “web como arte” que Piglia antecipa ainda será escrita; no segundo, já o foi, embora seja cedo para saber quando ou onde. De uma forma ou de outra, o que parece estar na base de tudo é a ideia de arte como um discurso que se nutre da decadência. Oscar Wilde gostaria disso.
9 Comentários
Acho que é tudo mais simples, Sérgio. O Piglia tá forçando a mão. Por que séculos de história da literatura pesariam menos na experiência de um Joyce que a história recentíssima do cinema? O público que teria migrado do romance pro cinema não existia ainda, nem havia filmes suficientes pra isso. O cinema era uma curiosidade quando Joyce começou a escrever Ulisses. Sem falar que o Joyce se lixava pro público, não dependeu dele pra escrever. Tem mais: hoje ainda continua se escrevendo romances à lá século 19. São os que mais vendem, os que mais se tornam filmes. Quando os críticos franceses descobriram o cinema, o cinema ainda ia bem, obrigado. E a televisão ainda nem sabia direito o que fazer com a imagem. Hoje ainda tem programas que são puro rádio. E algumas séries, hoje em dia, são boas não porque a internet tomou conta, mas porque finalmente alguns bons roteiristas e diretores abriram caminho nela.
Se aplicaria a Shakespeare, Beethoven, quando ainda na labuta? Acho que não. E Beatles? Pop demais para o insight do erudito?
A gente pode ir com a arte por Hegel,por Lukács dependendo do viés, Aristóteles, pelos russos,com Teixeira Coelho, mas com Piglia tô achando um pouco difícil. Essa do poder da arte caduca é nova!!!
Abriram caminho na tevê, por supuesto.
O argentino tem fôlego, ao que parece. Li dele o “O ùltimo leitor”, e no livro bem que há umas sacadas interessantes, de alguém que realmente dá aula em Princepton não é à toa – o homem é brilhante! Mas falta aprofundar um pouco para não virar piada.
Gosto da sua suposição de “arte que se nutre do discurso da decadência”, e arrisco outra: essa relação com linguagens
decadentes pode também ser uma busca sentimental de emoções e experiências passadas – ou pelo menos um fetiche que nos traga de volta essa sensação de familiaridade, de um tempo e pessoas que já passaram. É meio como gente que coleciona discos de vinil em plena era do download, que se apega às gravações antigas ou aos filmes antigos em plena era da alta definição, do 3D etc.
Basta reparar que sempre há em cada geração quem transforme em arte aquilo que se extinguia no momento mesmo de sua formação, buscando reconstruir, anos depois, no “exercício” de sua arte, o mundo de seu passado. Quando uma determinada maneira de apreender e determinar o mundo deixa de existir – uma maneira que nos acompanhou desde a infância – muitos sentem uma certa nostalgia, constroem um monumento afetivo ao passado para lembrar que as formas atuais de experimentar e traduzir o mundo não são as únicas.
Saint-Exupéry escreve em “Terra dos Homens” que usamos palavras antigas para descrever um mundo que já as ultrapassou, que já não cabe mais nelas – a língua avança mais lentamente do que o tempo e as transformações que ele traz.
Ou não, sei lá.
Suposição, não: sua leitura. Foi mal.
A arte se nutre da decadência sempre que o meio de que se vale encontra possibilidades de se libertar do mediano. Ao cair em desuso entre a maioria um meio busca saídas na especificação de seu discurso, busca certa erudição e recupera prestígio. Santa decadência!
Piglia: ‘A crítica literária desapareceu do mapa’ | Todoprosa - VEJA.com