Em seu lapidar ensaio Teses sobre o conto, publicado no livro “Formas breves”, o escritor e crítico argentino Ricardo Piglia resume assim o ponto de partida de suas reflexões sobre as histórias curtas – ou, em inglês, simplesmente stories:
Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.
Numa linguagem límpida e legível que não esconde a generosa – e rara – intenção de conversar com o maior número possível de leitores, sem prejuízo do rigor do pensamento crítico, o autor passa então a discorrer sobre a tal duplicidade: a de uma história ostensiva, exterior, que contém em si uma história secreta, cifrada, elíptica.
A história que ele chama de 1, a evidente, só aqui e ali deixa entrever ou pressentir “nos seus interstícios” a história 2, que ao irromper por fim na consciência do leitor provoca aquele efeito de surpresa, revelação ou epifania que se espera de todo conto.
Piglia recupera uma deliciosa anotação rabiscada pelo russo Anton Tchekhov, mestre do conto moderno, embrião de uma história que ele jamais escreveu: “Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se”.
A história 1 – o jogo, a sorte, a euforia do enriquecimento – tem no subsolo de alguma forma a história 2, de desespero total, que conduz ao final inesperado: o suicídio. Piglia não diz, mas digo eu, que coube a J.D. Salinger escrever a história natimorta de Tchekhov em seu famoso conto “Um dia perfeito para o peixe-banana” – com o deslocamento da suposta plenitude na roleta para o glutonismo suicida do peixe do título, que aparece no diálogo terno e bucólico de Seymour com a garotinha à beira-mar.
Deslocamentos e retoques autorais parecidos com este fornecem parte da graça do ensaio de Piglia. Para explicar a diferença entre o conto tradicional – no qual a história secreta se revela inequivocamente no clímax – e o moderno, que complica infinitamente o esquema sem chegar a superá-lo, Piglia imagina o tratamento que alguns autores dariam ao argumento de Tchekhov.
Ernest Hemingway, conclui ele, contaria apenas a história 1, fornecendo ao leitor detalhes sobre a técnica do jogador e a bebida que ele toma. Sua teoria do iceberg o levaria a manter inteiramente submersa a história 2 e “não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto como se o leitor já o soubesse”.
A brincadeira fica melhor ainda: Kafka viraria a mesa, contando com absoluta clareza a história secreta e narrando “sigilosamente a história visível, até convertê-la em algo enigmático e obscuro”. A solução que o crítico imagina para Jorge Luis Borges também é ótima, mas, intrincada e sutil como o próprio gênio argentino, não cabe neste artigo.
Que sua ausência sirva de incentivo à leitura do excelente “Formas breves”.
O que precisa caber neste artigo, por ser sua própria razão de ser, é o fato de que, relendo recentemente as Teses sobre o conto, eu me dei conta de algo perturbador que não havia me ocorrido da primeira vez: por que só o conto?
A duplicidade das histórias, aquele jogo de sinais secretos que se estabelece entre a narrativa ostensiva e a narrativa oculta – isso não estaria presente em toda a literatura de ficção, qualquer que seja a extensão do relato?
Não sei se podemos chegar a cravar uma lei tão abrangente, mas nos meus romances certamente está – e mais do que nunca em “O drible”, que não deixa de ser também ele uma variação mutante da tal anedota de Tchekhov.
A verdade é que não sei escrever de outra forma. Talvez isso faça de mim um contista secreto em pele de romancista, mas não creio. Parece-me mais provável que Ricardo Piglia tenha escrito, sob o título Teses sobre o conto, um brilhante conjunto de teses sobre a arte narrativa em geral.
2 Comentários
Excelente artigo! Ótimas referências para estudos. Abraço.
Bom demais.