Num debate na Biblioteca de São Paulo com a presença de outros finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, sábado passado, um rapaz na audiência nos perguntou – a Adriana Lisboa, Michel Laub e Flavio Cafiero, além de mim – o que pensávamos do “método” de escrita defendido por Edgar Allan Poe em seu famoso ensaio “A filosofia da composição”.
Foi um prazer inesperado ver surgir numa conversa literária de hoje, e trazido por um leitor jovem, o texto de 1846 em que Poe explica passo a passo como escreveu o poema “O corvo”. Trata-se de um velho favorito meu, ode curiosa ao planejamento meticuloso e à intencionalidade como os melhores conselheiros do escritor – uma ode composta, o que é melhor, por um cultor de histórias fantásticas, sombrias, fantasmagóricas, normalmente associadas ao oposto do racionalismo solar que o ensaio defende.
O fascínio que “A filosofia da composição” provocou em mim quando o li pela primeira vez, muitos anos atrás, está longe de morrer, mas faz tempo que foi temperado por ceticismo. Diz o escritor americano que “O corvo” foi escrito “com a precisão e a sequência rígida de um problema matemático”. E promete: “É meu desígnio tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição se refere ao acaso ou à intuição”.
O debate sobre a sinceridade do autor ao dar a receita de bolo que o conduzira ao famoso poema do Nevermore nunca mais chegou ao fim. T.S. Eliot foi um dos que duvidaram do ensaio. Segundo os céticos, Poe teria feito, depois de pronta a obra, um simples exercício de racionalização para criar em retrospecto um “método” que desse sentido geral a decisões que, no ato da escrita, tinham obedecido – como sempre obedecem – a impulsos de natureza variada, um tumulto em que se entrecruzam momentos de cálculo frio com a mais cega intuição e até o simples acaso.
Tomá-lo pelo valor de face me parece ingênuo, mas é muito divertido acompanhar o percurso de decisões estéticas desenhado pelo tal método de Poe – começando pela extensão e passando por efeito (“elevação”), tom (“tristeza”), estribilho, tema, ritmo, metro, uma coisa se desdobrando engenhosamente da outra. Ao especular logo de saída sobre o tamanho ideal de um poema “que a um tempo agradasse ao gosto do público e da crítica”, ele chega com segurança, após algumas considerações, a uma medida em torno de cem versos. “O corvo” tem 108.
Mais do que apenas divertido, e apesar de provavelmente insincero e até mistificador, “A filosofia da composição” não é um ensaio desprovido de certa verdade profunda sobre o fazer literário. Ocorre que exercitar a racionalização para inventar um plano que organize em retrospecto o caos criativo é, na minha experiência, a parte mais importante da brincadeira.
Não é preciso fingir que a clareza sobre o desenho geral da obra já existia antes da confusão da escrita para que ele, o desenho geral, tenha valor estruturante. Basta voltar, reescrever, descartar uma sobra aqui, preencher uma lacuna ali. E também ser maleável para alterar constantemente a planta baixa a fim de ajustá-la às exigências do terreno e do material de construção.
Entre projetar cuidadosamente um livro e se deixar levar pelo turbilhão das palavras, entre o cálculo e o jogo de dados, entre a vigília e o sonho, acho impossível escolher um lado. Seria até contraproducente. A guerra é dura demais para que se descarte qualquer arma do arsenal.
O resto é edição, edição, edição – eis a verdadeira filosofia.
4 Comentários
Sérgio, a cada sábado você diminui um pouquinho a minha ignorância.
Sergio, tenho um só livro de Edgar Allan Poe. Acho que um livro de Contos.
Mas o que me lembro do conto, foi tão assustador(até hoje) que nunca li o restante do livro.
Porem, cada vez que leio sobre ele, do valor literário dele, a vontade é empurrar meu medo e mergulhar na literatura dele.
Lembro-me do dito de Hemingway, «Poe é um escritor de talento. A sua obra revela talento, construção maravilhosa, e está morta» (“As Verdes Colinas…”).
Antes de tudo, sinto-me grato à vida diária, pois, nela, encontrei, há pelo menos sete anos, um blog que, de fato, chamou (diria imantou, mesmerizou) minha atenção: o “Todo Prosa”. Li, fascinado, li tomado de alegria, li imerso em tristeza, li arrebatado em meio a indefinida angústia. E por quê? Hum… Ali se concentravam todas as questões que me afetam desde quando tomei consciência de que lia e do que era (e é) para mim ler. Enfim, algo como catarse havia se dado. E segui seguindo você. E o principal motor desta peregrinação ainda é a questão para mim fundamental (explicarei, se houver oportunidade, mais adiante, o motivo de ser tão importante): o que faz de um escrito uma obra literária? O que define um escrito como literário (e ao nível da boa literatura) e o que qualifica um outro escrito como não literário (no sentido de fracasso, de não alcançar a, digamos, “literariedade”)? Peço desculpas pelo incômodo, por alongar-me, mas, ao mesmo tempo, suspeito de que você é bem familiarizado com este tipo de solidão.
Grato imensamente, receba meus votos de sucesso, saúde e paz.
Léo A. Mittaraquis