Acabo de confirmar no Google minha impressão inicial de que “Verão” (Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira, 280 páginas, R$ 44,50), o mais recente romance do escritor sul-africano J.M. Coetzee, foi um sucesso praticamente unânime de crítica, primeiro no exterior e depois no Brasil. Não faltou sequer o qualificativo de obra-prima para esse estranho livro de memórias ficcionais, o terceiro da trilogia “Cenas da vida na província” (após “Infância” e “Juventude”). Dedicado ao início da maturidade do autor, nele um biógrafo chamado Vincent conduz entrevistas com pessoas que conheceram o “falecido” escritor sul-africano John Coetzee – quatro mulheres e um homem que, de modo geral e discordâncias pontuais à parte, montam um painel desolador do sujeito, retratado como frio, retraído, fisicamente desagradável, socialmente covarde e sexualmente patético.
Terreno movediço, como se vê. O que é verdade, o que é ficção? E isso importa? Acho boa a premissa do livro, e o pós-modernismo ululante que poderia afastar certo tipo de leitor não me incomoda – pelo contrário, tendo a ser tolerante com jogos de espelho, fundos falsos, narradores pouco confiáveis e as camadas de ironia que se depositam nesses ambientes. O problema, como sempre, é que premissas só contam até o momento de verificar o que se faz com elas. E no caso de “Verão” me parece que Coetzee faz pouco, como um craque cansado.
O leitor tem aqui a opção de parar de ler esta resenha. Ou de continuar lendo com sua discordância prévia desembainhada: terá os argumentos de centenas de críticos de diversas nacionalidades a apoiá-lo. Eu mesmo discuti muito comigo, cheguei a me insultar em alguns momentos por considerar fraco um romance tão elogiado – e finalista do Booker – do Nobel de 2003, um escritor que admiro. Mas…
Pensando bem, o penúltimo livro de Coetzee, “Diário de um ano ruim”, já deixava certa impressão de fadiga ou desinteresse do autor pelo projeto ficcional. Montado como uma sucessão de pequenos ensaios ancorados num fiapo de intriga romântica, “Diário…” tem uma estrutura heterodoxa e meio capenga que, embora evidentemente deliberada, não consegue afugentar a pulga que em algum momento se aloja atrás da orelha: se quisesse se livrar de editores insistentes, não poderia um escritor preguiçoso encontrar solução muito parecida – esvaziar a gaveta e amarrar tudo com o primeiro barbante à mão?
A suspeita é com certeza injusta, sobretudo se considerarmos que o autor de “Desonra”, se não é um narrador especialmente imaginoso ou sedutor, pode ser considerado o mais implacável investigador de dilemas éticos da literatura contemporânea. Mas pulgas não dão bola para questões éticas, eis o problema. E se “Diário de um ano ruim” acabava por recompensar o leitor com o brilho intenso de alguns ensaios, “Verão” não tem sequer esse trunfo.
Como sátira da velha curiosidade – aguçada em nossa época cultora de celebridades – por episódios da vida dos grandes escritores, dos quais só deveria nos interessar a obra, o livro é previsível. Como exercício de autocrítica, tem a mão tão pesada que funciona como uma egotrip em negativo, chegando perto de suscitar a desconfiança de que no fundo só esteja “pescando elogios”, como se diria na língua de Coetzee. Resta o exercício formal e razoavelmente engenhoso de desconstrução simultânea do romance e das memórias, que sem dúvida tem interesse, principalmente para estudiosos de literatura como o próprio autor.
Após a desconstrução, contudo, o que sobra de romance tem baixa voltagem romanesca – com exceção de uns poucos episódios magistrais, mas sem continuidade – e o que sobra de memória é um enigma. Um enigma que não sei quantos leitores estarão se coçando para solucionar – afinal, concordando com o autor, imagino que os melhores deles também se interessem por sua ficção e não por sua vida.
“Fogo não é a primeira palavra que vem à mente quando se pensa nos livros dele”, diz o biógrafo de John Coetzee a certa altura. “Mas ele tinha outras virtudes, outras forças. Por exemplo, eu diria que ele era firme. Que tinha um olhar firme.” Concordo com o tal Vincent, e talvez seja esse o problema. “Verão” é um campo tão coalhado de minas pós-modernas que não permite ao autor exercitar sua maior qualidade. A capacidade de sustentar o olhar além do ponto em que a maioria de nós o desvia, transformando frieza em clarividência, exige mais fôlego narrativo do que a estrutura deste romance comporta.
Ou então fui eu que, como sempre, não entendi nada, como já previa uma certa namorada dos anos 80, presença garantida no livro de memórias inventadas que não escreverei.
16 Comentários
Xará: Também não gostei tanto assim do VERÃO. Meu preferido da trilogia continua sendo o JUVENTUDE, com aquela narração em terceira pessoa “falsa” que o Coetzee faz tão bem. Será que o cara cansou mesmo? Prefiro pensar que é uma crisezinha passageira. Abraços!
Penso que a crítica literária atual está se diluindo dicotomia “gostar” ou “não gostar” de um certo livro. Será que é esse realmente o papel do crítico literário? Ser um guia para os seus leitores decidirem se devem ou não devem ler um livro. Faço uso de uma citação de Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, que diz que “um livro tampouco tem objeto. Considerado como agenciamento, ele está somente em conexão com outros agenciamentos, em relação com outros corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender em um livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar as intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu.” Será que estamos vivendo um momento em que a crítica se compara a um papel de bala, ao modo de Flora Süssekind, que logo após abrirmos já perde o valor e vai para o lixo? É de se pensar a respeito.
Sérgio, meu caro, também aposto nisso.
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Gustavo, me desculpe mas acho esse papo uma tremenda de uma falsa questão. Como ocorre há séculos, quem quer crítica “profunda”, deleuziana ou não, sabe bem onde procurar. São gatos pingados e é bom que existam, mas a maioria dos leitores de literatura só deseja se informar, cotejar suas impressões com a de outras pessoas que considere relevantes nesse universo, concordar, discordar. É feio zombar deles. Não vivem disso, não ganham bolsas de doutorado para achar que só isso importa. Leem, alguns apaixonadamente, mas também veem filmes, criam filhos, frequentam restaurantes, e gostam de ler sobre essas outras áreas de interesse também (a vitória do Iluminismo é tragicamente parcial, mas inegável).
Dê-lhes duas páginas de Deleuze e eles vão jogar no lixo, irritados, ou morrer de rir – com razão. Tentar reduzir toda a conversa sobre literatura a um único discurso, o da “grande crítica”, é autoritarismo. Dizer que há algo errado nessa conversa é uma postura feudalista, antidemocrática. Sobre isso sim devíamos pensar.
Não que a questão me afete diretamente. Sou escritor, nunca me declarei crítico (nem gosto muito da palavra) e falo de literatura com o impressionismo mais radical que posso, tentando ser o mais ético possível ao compartilhar uma experiência de leitura que por definição é difícil de sistematizar. Falar dela de outra forma me parece cada vez mais vão, perda de tempo mesmo. Mas não pretendo fazer disso fórmula universal. Lê quem quer. Como disse na minha resposta a Flora Sussekind, esse papo parece apenas disputa de poder. Tô fora.
Abraços a todos.
O argumento de que um leitor comum jogaria no lixo qualquer livro de Deleuze certamente é desnecessário, e não serve de parâmetro. Mas não creio que a passagem citada por Gustavo sirva de argumento para desqualificar o pensamento de Sérgio. A noção de livro como agenciamento, Deleuze e Guattari tomam emprestada da proposição de Foucault de que o objeto da literatura “moderna” é a materialidade do livro, ou seja, sua finitude, o fato de que ele não pode dizer tudo, que ele é sempre parcial, no fim das contas, uma brochura numa estante empoeirada. Diferentemente da literatura clássica, cuja narrativa ganha uma permanência na linguagem que a descola da materialidade do livro e se entrelaça na memória da língua, tal qual argumentou Benjamin em O Narrador.
Agenciamento em Deleuze e Guattari é conexão, mas, também, finitude, produção de limites.
É justamente porque vivemos uma época em que a narrativa literária esgota-se no seu campo de sentidos, dela não tiramos leis ou regras para a boa-conduta, interpretações gerais do mundo, que leituras como a do Sérgio encontram seu espaço e a sua validade. Cada leitor está empoderado para construir a partir da sua coleção de leituras, a sua visão do mundo, o seu “agenciamento” com o mundo.
Eis porque a tua passagem, Gustavo, mais reforça a posição crítica de Sérgio, do que a desqualifica.
O leitor comum, e alguns mais qualificados, certamente, achará este comentário, um saco, mas se o analfabetismo virtual é uma lástima, também o letramento pode ser insuportável. Abraços!
Não quis em nenhum momento desqualificar a crítica de Sérgio, apenas disse que podemos falar muito mais sobre o livro de Coetzee, e de qualquer outro livro, do que apenas a opinião “gostei/não gostei”. Não acho que existam poucos “críticos profundos”, muito pelo contrário. Em relação ao objeto livro, Deleuze e Guattari dizem que quando lemos um livro não o fazemos para saber o que ele quer dizer, ou saber da “história” etc. Aí sim seria válida uma crítica dizendo se gostou ou não do livro em questão. Mas não é de se esperar pensamento diferente, levando em consideração que a crítica atual apenas sabe reproduzir a mesma coisa. O ponto máximo é a Folha, em especial o caderno Ilustríssima, em que temos os “10+” da Literatura e o julgamento de “bom”, “médio” ou “ruim”.
Gustavo, se você prestar um pouco mais de atenção, perceberá que o “não gostei” no meu texto é ponto de partida, por destoar tão radicalmente do resto da humanidade. A resenha começa aí, não termina aí, por isso não entendi o “apenas”. E sem ironia nenhuma, gostaria muito de ler esse tanto mais que você – e quem quiser, claro – tem a dizer sobre o livro do Coetzee.
essa é apenas a impressão de um escritor mediano.
Hahaha. Gênio.
Desculpe o off topic, mas um assunto que eu vejo muito pouco tratado na literatura nacional é a questão dos números de vendas de livros. Aquilo que a princípio pode parecer um tema enfadonho, eu enxergo como uma lacuna nos fóruns de literatura do Brasil.
Esse recato que existe com relação a tudo que envolve o lado mercantil da literatura me causa certo incômodo. O cinema, que não é uma arte menos nobre, não se avexa de atingir determinadas marcas e ostentá-las, até mesmo para promover as obras.
Enquanto isso, no universo dos livros, a única informação que recebemos são as repetitivas listas de mais vendidos. E ficamos sem saber o quanto um livro deve atingir para ser considerado sucesso, ou mesmo o quanto ainda vendem clássicos como Lolita ou Cem anos de Solidão atualmente.
Mais um vez, desculpe pelo off topic, mas gostaria de ver o assunto tratado aqui no site,
Abs
Salve, Sérgio…
Graças ao twitter descobri que vc já começou aqui pela Veja e, dou o braço a torcer, apesar da Veja, tudo continua ótimo por aqui. Gostei muito da sua crítica ao livro. Voltarei muitas vezes. Abraço. Vinícius Antunes. http://cronicasdumasviagens.wordpress.com/
Danilo: sugestão anotada. O tema é mesmo meio lacunar, talvez porque nossos números sejam em geral muito baixos e as editoras não se interessem em badalá-los. Um livro de ficção que venda dez mil exemplares já pode ser considerado um sucesso de público. Se concentrar essa venda em poucos meses, pode pegar lista.
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Vinicius, é um prazer vê-lo por aqui. Apareça sempre, agora que aprendeu o caminho.
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Abraços a todos.
Vou fugir do tópico, mas não do blog. Quero puxar de volta uma reflexão anterior do Sérgio, sobre a possibilidade futura de um “Grande Romance sobre o Futebol”, e lançar a provocação: será que ele é realmente necessário ou visível no horizonte? Será que o que estamos acompanhando a respeito do caso Bruno já não resume, em tom grotesco, muito do universo da bola? Temos ali a fama repentina de jovens de classe social baixa alçados à categoria de ídolos populares, a um patamar de renda irreal para a maioria da população, temos a jovem que circula no ambiente, temos festas regadas a sexo, relações perigosas, e ainda temos crime, drama e tragédia. Será que um hipotético romance sobre Futebol conseguiria competir com isso, Sérgio?
Abraço pela casa nova.
É bem difícil, Hefestus, concordo. Um abraço e seja bem-vindo à casa nova.
O desconforto da crítica | NotaPE
Enquanto existe 2010… | Todoprosa - VEJA.com
Até que enfim alguém que se dispõe a falar “mal” de Coetzee!
Obrigada por isso.