A vitória de Cristovão Tezza no Portugal Telecom, confirmada ontem à noite em São Paulo, foi uma das mais previsíveis da curta história do mais importante prêmio literário do país. Isso é chato? Não, isso é muito bom.
Se, no método científico, a capacidade de sustentar previsões é prova fundamental da validade de uma teoria, no discurso sobre a literatura, que de científico não tem nada, previsões que se confirmam podem nos dar a sensação quase eufórica de que ainda somos capazes de falar a mesma língua após (ou no meio de?) um longo inverno de cada-um-por-si pós-modernista, com sua galeria de luminares que não dura(va)m mais que uma Flip, dois meses ou três quarteirões.
Romance em que o experiente escritor catarinense, no auge da forma, se transforma em personagem para tematizar com coragem e sem pieguice sua relação com Felipe, seu filho com síndrome de Down, “O filho eterno” (Record, trecho aqui) foi, disparado, o livro brasileiro lançado em 2007 que equilibrou com maior sucesso os pinos malabares freqüentemente antagônicos da legibilidade (aquilo que ganha o público) e do rigor estético (aquilo que ganha a crítica); da alta voltagem emocional (que atrai leitores) e do trabalho maduro de linguagem (que atrai elogios).
Fez isso com tanta naturalidade e desenvoltura que deixa no ar uma pergunta incômoda: os tais pinos precisam mesmo se repelir ou nós é que, por comodidade, incompetência ou vício, os tratamos assim?
25 Comentários
Viva, viva o Tezza! Baita livro.
Notas Sobre o Portugal Telecom: Foi merecido, “Filho Eterno” é um baita livro.
Confirmou também os resultados do Jabuti, invertendo o segundo e terceiro colocado. “Antônio” de Beatriz Bracher beira à perfeição.
Sérgio: Os “pinos” podem conviver sem se repelir. Mas é difícil, e é necessário trabalho árduo, só que a maioria dos escritore ou não acreditam nisso ou são arrogantes demais para “abrir mão” de algum deles e martelam apenas em um, quiçá dois.
Perfeito, Sérgio. Os prêmios que ele tem conquistado com esse extraordinário livro são todos merecidos. E felizmente nos livram de testemunhar láureas injustificadas.
Merece ser incensado, mesmo. Li a tres dos finalistas. Apesar das opinioes contrarias, gostei do Hei de Amar uma Pedra. Mas achei o Filho Eterno – que dizem as mas linguas ter em seu enredo mais de pai eterno que do filho – otimo: sem mover-se a rogos, preciso, inexoravel e sensivel.
Olha, não gostei desse livro. Larguei a leitura lá pela página 50/60. Sérgio fala da alta voltagem emocional do texto. Eu diria altíssima carga emocional, cansativo, uma ego trip desinteressante . A estória não flui, toda hora o autor parece se impor a necessidade de, verborragicamente, nos impressionar com seus medos. É possível saltar parágrafos inteiros sem problema algum, de tão circulares. De todo modo, é notável a coragem do autor ao se apresentar tão mesquinho e cruel, enfim, tão humano, diante do choque de um filho deficiente mental. Mas talvez eu seja irresponsável por julgar tendo lido, sei lá, apenas 1/4 do livro.
Cláudio, à medida que o livro avança, fica claro que a relação pai-filho vai se distendendo. Um dos méritos do Tezza, entre tantos, é justamente conseguir um amálgama quase perfeito entre forma e conteúdo.
2007 nos deu esse livro maravilhoso e mais laguns bons volumes… 2008 está feio…
Opa, oi. Sei que o nome do blog não é Todoprosa à toa, e também sei que o artigo que aparecerá quando você clicar no meu nome tem só um pouco a ver com nossa conversa aqui, mas acho que esse pouco pode valer a pena, então clica no meu nome. É um artigo de Paulo Henriques Britto, chamado Poesia e Memória, mas está em inglês.
(E eis aqui, Sérgio, a razão para esse link quase off-topic: tenho visto que essa questão da leitura não-idiossincrática, da leitura compartilhada por uma comunidade, dos livros que nos dão o sentimento de pertencer a uma coletividade, essa questão é bem importante pra você–e neste post você mais uma vez alude a ela naquele “falar a mesma língua”. Gosto de pensar nela também. O artigo mostra que tem mais gente pensando nisso. Abração.)
Tiago: muito interessante o artigo do Paulo Henriques Britto, obrigado pelo link. Tem uma clareza pouco comum nesse tipo de ensaio, embora, sei não, esses esquemas absolutos acionem inevitavelmente o meu pé-atrás. Funciona bem com Pound, mas será que todo poeta que poderia ser classificado (pelo próprio PHB) de pós-lírico privilegia a matéria lida sobre a vivida? Uma coisa necessariamente exclui a outra?
A transposição desse raciocínio para a prosa criaria novos problemas, claro, sem deixar de ser instigante. Guimarães Rosa é épico, lírico ou pós-lírico? As três coisas, eu diria.
De qualquer maneira, fico com a impressão de que você entendeu meio fora de foco o que eu quis dizer com “língua comum” – e é verdade que eu também não expliquei. Minha preocupação é mais básica e, de certa forma, anterior à discussão que o PHB tenta levar. Falo de um mínimo solo comum de referências que às vezes parece faltar. Um livro pós-lírico, para ficar na terminologia favorecida por ele, pode ser tão agregador de leitores quanto um lírico ou um épico. Um que trate de problemas comuns a todos os habitantes de uma cidade pode ser tão admirado por determinado grupo quanto outro construído sobre abstrações formalistas.
A coisa só fica esquisita quando um chama de épico o que outro chama de lírico, ou de revolucionário o que outro chama de velho, se é que você me entende. Espero deixar bem claro que não estou pregando contra a divergência, o debate, mas contra algo que está aquém do debate, e o boicota.
Um abraço.
Eu, que conheço a obra do Tezza desde bem antes dele começar a ficar “badalado” só tenho a dizer que fico muito, muitíssimo feliz, que ainda existam escritores brasileiros do nível dele. São poucos, e posso contá-los nos dedos (da mão mutilada do Lula): Cristóvão Tezza, Elvira Vigna, Esdras do Nascimento, mais um ou dois – e só.
Poucos?
Sei lá: do jeito que a coisa anda, dou graças a deus por ainda existir meia dúzia de gatos pingados nessa seara chamada “boa literatura”…
Ih, Sérgio, eu também não deixei claro o pouco que o artigo poderia ter com nossa conversa. Ainda bem que você gostou do artigo e que eu não fiz você perder seu tempo.
Você tem razão: a maior parte das coisas que ele diz a respeito da diferença entre a poesia lírica e a pós-lírica é explicitamente off-topic (ninguém pode me acusar de não ter avisado!). Apesar disso, seu comentário só reforça minha opinião: ele só serve para que eu continue achando que vocês têm alguma coisa em comum, sim, na medida em que você diz, “Falo de um mínimo solo comum de referências que às vezes parece faltar”, e ele, escreve:
When Dante alludes to Virgil, he is making the eminently reasonable assumption that his readers will know what he is talking about; the same may be said of Drummond when he quotes Camões. […] When he or she alludes to a text, the lyric poet is in fact saying: I have read this particular poem, which I assume you have read too, and this is my response to it; yours may be quite similar or just the opposite, lecteur, mon semblable. But when Eliot quotes from Countess Marie Larisch’s memoirs, he cannot expect anyone to be familiar with this long-forgotten work, just as Pound, when he strews Chinese ideograms about the page, does not seriously expect his reader to make anything out of them.
É essa presunção de que o outro leu alguns livros que nós também lemos, essa presunção do “lecteur, mon sembable” que cria uma espécie de empatia, que possibilita a conversa–é isso que falta hoje em dia. Resta saber por quê.
Pergunta incômoda: se o Tezza não tivesse mesmo um filho com síndrome de Down, o narrador do seu livro se sustentaria ficcionalmente? Tentem reler o livro deixando de lado essa informação. É constrangedor.
Achei estranho o fato de que pouca (ou nenhuma) gente tenha lembrado dois precursores do “romance” de Tezza, ambos bem melhores: Uma questão pessoal, de Kenzaburo Oe, e Nascer duas vezes, de Giuseppe Pontiggia. Nenhum crítico leu estes livros? Ou estavam ocupados demais elogiando a sensibilidade do compatriota?
Último ponto: o dia em que O filho eterno for melhor que qualquer páginas de Lobo Antunes, choverá ouro em pó.
Juca, deixe de ser implicante. O japonês e o italiano foram citado em várias críticas, inclusive porque foram citados pelo próprio Tezza, em seu blog e em algumas entrevistas.
Tente ler Por Quem os Sinos Dobram imaginando que Hemingway não esteve na Espanha. Ou então releia os Grandes Sertões, achando que Guimarães Rosa não cavalgou por aquelas lonjuras. É o tipo do exercício besta, não acha?
Complementando:
Uma obra vem à luz graças a um conjunto de circunstâncias. Tentar imaginar como seria em outras circunstâncias é que é constrangedor…
Juca, obrigado por trazer um pouco de divergência ao clima festivo. Duas coisas só: para mim não existe dúvida de que a narrativa se sustenta sem o auxílio da biografia do autor, embora o fato de fazer fronteira com o memorialismo (ou com a história, o ensaio, o relato jornalístico) não diminua romance nenhum; e sim, pelo menos o livro de Kenzaburo Oe eu garanto que foi citado à beça na época do lançamento, mas aparentemente ninguém achou que ele deveria permanecer como único dono do tema.
Saint: Você é um privilegiado. Eu conheci o Tezza já com badalação. Mas isso deve ter relação com minha pouca idade.
Juca: Concordo com o Daniel, e acrescento esse tipo de exercício está fazendo as pessoas esquecerem que Machado de Assim e Mario de Andrade eram negros, vamos esquecer que Clarice Lispector era Mulher também? Tente ler Clarice Lispector e não considerar que ela era uma mulher. Tente ler Pirandello e ignorar que a esposa tinha doenças psiquiátricas graves. Todo autor marca sua obra.
Agora, se começarmos a diminuir um texto literário por que alguém usou a forma anteriormente ou já contou aquela história de outra maneira… Bom, como diria Chico Buarque, se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão.
Ontem estendi a discussão sobre o Tezza em meu blog recém nascido http://www.novasvisoes.com.br/fernandotorres
Fernando,
Não chama o Saint de velho assim na cara dura não 😀
E eu achava que quem gritava “pega ladrão” era o Bezerra.
O livro do Tezza é melhor do que o livro do Kenzaburo Oe, que tem um tom paternalista meio insuportável na hora de lidar com seu protagonista. A sinceridade esgarçada e auto-irônica funcionou bem melhor.
Acho que O Filho Eterno tem uma dívida muito maior com o “Juventude” do Coetzee do que com livro do japonês.
Caros,
o livro é bom pacas. Não dá pra ignorar, claro, o fato do Tezza ter um filho Down – mas isso não faz do livro pior ou melhor.
abs,
Eric: Você me conhece, eu sou um moleque. A Idade do Saint não foi colocada em questão. Mas a minha ineperiencia.
Rodrigo: Posso ter me confundido. Mas algum dia o Chico Cantou essa. Mas acho que o que é dele (com nome de Julinho da Adelaide) é “Chame o ladrão.”
Acho mesmo que eu caí naquele erro de atribuir todas as frase pro Jabor, Chico ou Einstein.
Este livro é sensacional. O melhor em muito tempo que a literatura brasileira produziu. E tem toda a cara de um clássico da produção nacional de todos os tempos – afinal, não é por acaso que há tanta repercussão crítica em torno dele. E também não é por acaso que ganhou tantos prêmios. Aliás, pelo jeito, ainda ganhará mais. Hoje à noite tem o livro do ano do Prêmio Jabuti. E, em novembro, o prêmio São Paulo de Literatura. Isto é algo para ser comemorado: se ganhamos um livro para o cânone brasileiro, fazia tempo que isto não acontecia.
Abs,
Marcos.
Não li ainda o livro, mas confio no que vc diz, vou conferir.
Tb escrevo, e é difícil sustentar estes pinos 🙂
É preciso consistência e saber escrever.
Bom te reencontrar aqui, hj descobri seu espaço novo ao acaso.
Abs
Laura
http://www.lauravive.blogspot.com
Kummel, otimo paralelo. Realmente o Tezza lembra algo do protagonista de Boyhood e Youth – mas para ai, pois a linguagem a maneira de narrar eh totalmente diferente. Lembra também Protnoy e outros, dos romaces antigos do Roth. Ou seja, o Tezza não tem pena de seu protagonista. Nao o trata com carinho e por isso o livro, no geral, se torna bom. Pois convenhamos, ca pra nos, um enredo onde o protagonista eh uma crianca com Down e o pai um literato alcoolatra, poderia facilmente incorrer em bobagens lacrimejantes, na facilidade do piegas, do “vejam como sofro…” e… no intelectualismo barato.
Mas… quase chego a concordar com o Claudio sobre a falta de necessidade de alguns paragrafos inteiros que me dao a impressao de so estarem ali para afirmar a personalidade pedante e egocentrica de um protagonista repelente. Falta de voz da filha e da mae.
Ao contrario do Claudio, nenhuma vez cai na tentacao de abandonar o livro – o que eh um bom barometro para me convencer de que o livro eh bom – mas concordo que o livro eh apenas um bom livro vencedor e apenas remotamente memoravel. Concordo: ha 1/4 do final, parecia nao haver mais nada a ser dito.
Crítica exata, perfeita. É o melhor de 2007, sem dúvida.