“Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro, já passou de português.” Assim cantava o grande Noel Rosa, um dos gênios da música brasileira, num samba-crônica dos anos 1930 chamado Não tem tradução. Apesar dos óbvios pontos de contato entre a canção – que diz a certa altura que “as rimas do samba não são I love you” – e o livro que você tem em mãos, não foram tais semelhanças que trouxeram o velho sambista para esta página. Noel está aqui para ser publicamente desautorizado diante do leitor lusitano.
Porque o idioma falado no Brasil é o português, ponto. Um português à brasileira, claro, como não podia deixar de ser. No entanto, com todas todas as suas liberdades, ousadias, alfinetes espetados no umbigo, influências indígenas e africanas, plasticidade dos pronomes e paixão pelas vogais, nunca “passou de português” e não creio que algum dia passará. E por que deveria?
Se a língua de Fernando Pessoa é estrangeira para mim, então já não sei quem sou – “fico sem poder ligar ser, idéia, alma de nome a mim, à terra e aos céus”. Da língua de Luís de Camões, com seus gerúndios de sabor tão brasileiro quanto os nossos, nem se fala. Será que isso é tão difícil de entender?
Ocorre que alguns lingüistas modernos dão razão ao menino-prodígio de Vila Isabel ao defender que o idioma falado no Brasil já se diferenciou da matriz lusa de tantas e tão profundas formas que merece declarar sua independência lingüística. Uma idéia que deve encontrar aí mesmo em Portugal um bom número de adeptos contentes – afinal, melhor que aqueles lá (ou seja, nós aqui) enxovalhem sua própria língua e não a dos outros, pois não?
A satisfação que me dá a edição portuguesa deste livro tão mergulhado nas dores e delícias do “brasileiro” de Noel não se limita ao mero orgulho de autor. Confunde-se com a alegria de constatar que, muito além dos ânimos nacionalistas acirrados de parte a parte pela recente polêmica do acordo ortográfico, é possível trocar dois dedos de civilizada prosa, de preferência com uma ou outra piada de entremeio, sobre o passado, o presente e o futuro desse belíssimo patrimônio cultural que compartilhamos.
Compartilho com os leitores do Todoprosa o prefácio que escrevi para a edição portuguesa do meu livro “What língua is esta?”, uma coletânea de crônicas lingüísticas aparecidas inicialmente no “Jornal do Brasil” e no site NoMínimo, publicada aqui em 2005 pela Ediouro. Nos próximos dias, a editora Gradiva lança o livro por lá.
20 Comentários
Foi feita a tranliteração para adequar à Nova Reforma Ortográfica?
Pois é, o Sérgio, o ardoroso defensor da reforma ortográfica, não perdeu o cacoete do trema.
Sérgio, meus parabéns pela chegada à terrinha.
Parabéns, Sérgio, e muito sucesso na terra do Roberto Leal!
Parabéns, mas cuidado com o Jet leg.
Prefácio muito sensato.
Obrigado a todos pelas mensagens bacanas. Só um esclarecimento, Rafael: não se trata de cacoete, eu simplesmente não adotei a reforma ainda. Não tenho pressa e, aliás, não entendo muito a afoiteza dos órgãos de imprensa em geral. Estamos apenas entrando num (longo) período de transição. Que, por sinal, será ainda mais longo em Portugal, razão pela qual, Fernando, meu livro está saindo lá na ortografia antiga. Brasileira, aliás. Abraços.
Belo pref’ácio com idéias muito sensatas. Parabéns e boa sorte!
Parabéns, Sérgio!
Espero que seu livro encontre a acolhida que merece em Portugal.
Tibor,
Vai ser difícil o Sérgio ter algum problema de “jet leg“, rsrsrsrs. Seria isso uma coceira na perna?
Parabéns, Sérgio!
Sérgio, o texto dá gosto de ler, como sempre. E, como sempre também , dá muito o que pensar.
Por exemplo: confesso que não entendi por que é que decretar a “independência lingüística” é o mesmo que enxovalhar a língua. O decreto, não boca de quem o propaga, tem motivações técnicas – há de fato abismos sintáticos inegáveis entre as duas variantes, ou línguas, ou o que quer que sejam.
Me espantei também (o pronome não foi uma provocação) com a sua sentença categórica: “o idioma falado no Brasil é o português, ponto” (e, parênteses, só com essa frase vou me dando conta da óbvia relação entre a sentença do juiz e a do escritor). Não que eu concorde com o veredito da independência. Mas confesso que estranhei o modo categórico como você embolsa a verdade, desautoriza o Noel e um punhado de lingüistas – e justifica tudo com duas linhas de um torneio lírico-sentimental. É pouco.
E olha que eu acho que entendi seu recado. Na minha leitura inevitavelmente enviesada, você disse que não há meios objetivos para decidir se duas variantes são, ou não, uma língua só. E que, se nos sentimos unidos e irmanados pelo língua portuguesa, se retemos esse sentimento da unidade, então pronto – somos todos falantes do português, e fim de papo. Se foi isso mesmo, só posso – como sempre, mais uma vez – sorrir, aplaudir e concordar (onde foi que eu li que uma língua é algo “que tem um exército e uma marinha”?). Mas, ainda assim, descartar uma questão tão espessa e polêmica com uma única cartada blasé ficou estranho. Pareceu menosprezo.
Ah, e aquele “enxovalhar” também não dsceu bem, não.
Forte abraço, e minha admiração sincera, sempre.
Caro Diogo,
Algo me dizia que esse texto o faria aparecer. É bem-vindo, como sempre.
Vamos começar pelo que me parece um mal-entendido. Eu nunca disse que decretar a independência lingüística é o mesmo que enxovalhar. O que tento dizer com bom humor é que isso, a independência, pode parecer também uma boa idéia àqueles portugueses preconceituosos que acham que enxovalhamos a língua deles. Se a nossa deixar de ser a deles, então tudo bem, não? Os extremos se encontram. Repare que o verbo que o incomodou foi usado num tom mordaz e, me parece, de modo algum acrítico, para caracterizar um modo lusocêntrico de pensar que certamente é o de parte do público ao qual o prefácio se dirige.
Sobre a sentença categórica, bem, acho que é isso mesmo. Prerrogativa de cronista. Não faltam estudiosos de alto coturno por aí para defender com argumentos espessos que a língua falada no Brasil é português, e eu concordo. Mas não sou um deles, nem isso caberia num prefácio tão leve e breve. Também não acredito que faltem meios objetivos para determinar isso, como você diz. Que falamos português brasileiro, como os australianos falam inglês australiano, perfeito. Mas forçar a barra de um brasileiro inteiramente independente me parece um equívoco mesmo, uma postura mais ideológica que científica. Lamento se isso parece menosprezo. É no que acredito.
Quanto a desautorizar Noel, isso foi, claro, uma piada. Mesmo porque ele nunca se pretendeu lingüista, como eu também não me pretendo.
Grande abraço.
“já passou de português” – concordo.
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Deuses, sou muito agradecida por Fernando Pessoa ter escrito em português!
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Duas linhas de “torneio lírico-sentimental” podem operar milagres e fazer valer o escritor, e a língua em que foram escritos os versos… rs
Tudo o mais… abóboras, pois não?
Ah, o prefácio está porreta!
Mas é que são duas línguas diferentes, o português e o brasileiro. Prova disso é que tive de estudar três anos o português para conseguir ler “Os Maias”. Façamos uma comparação. Eis a frase inaugural d’Os Maias:
“A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na visinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janellas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete.”
Um falante de brasileiro que jamais tenha estudado a língua portuguesa (i.e., a língua que se fala no país chamado Portugal) jamais entenderá aquela frase inicial. Vejam agora o mesmo texto, traduzido para o brasileiro:
“A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete.”
Viram só. A mudança foi radical e isso comprova que as duas línguas são muito diferentes.
O Sérgio sente “jet leg”, o Satan-Clair “Ass leg”…rsrs
Caro Sérgio,
1) Respeito e admiro sua agudeza de pensamento, mas decididamente você não precisou recorrer a ela para operar essa adivinhação: não seria difícil imaginar que eu ia dar as caras em um dos (posso dizer “infelizmente”?) escassos posts sobre língua e gramática. De todo modo, os posts de literatura eu sigo lendo todos os dias, pra módi me instruir.
2) Na mosca: foi um mal-entendido. Reli o texto e constatei: nesse caso, pelo menos, a culpa foi do leitor.
3) A mim, qualquer opção – em defesa de uma variante brasileira do português ou de uma língua brasileira independente – parece ideológica. (Talvez qualquer “constatação” científica o seja, mas eu não gostaria de acreditar nessa hipótese em toda a sua radicalidade.) E por um motivo simples: ainda não consegui descobrir quantas diferenças lexicais ou sintáticas uma variante precisa acumular pra ser decretada língua autônoma. 13? 48? 926? As sintáticas têm peso 2?
Veja bem: foi porque essa discussão me soa nonsense, e também porque muitos dos que a levam a sério exibem motivos fortes para crer no divórcio definitivo, que a sua convicção me espantou (deixo claro: a sua convicção, não a opinião em si). Mas você está certíssimo: é prerrogativa de cronista mesmo, e ainda bem que eles têm esse salvo-conduto. A minha defesa vai pelo mesmo caminho: acho que implicar e resmungar é prerrogativa de leitor de blog.
4) O Noel, no meu caso, também foi uma piada também – e ainda bem que ele não quis ser lingüista, nem médico. Meu ipod agradece.
Forte abraço de novo,
Diogo
Parabéns, Sérgio. Que boa notícia. Muito sucesso nesse lançamento português. Soube, também, que você irá publicar um novo romance em março. Caso faça uma sessão de autógrafos, não esqueça de avisar.
Abração!
Parabéns, meu caro.
abs.