A preocupação de não ser estraga-prazeres da leitura de ninguém me obriga a dizer que a cena abaixo, situada ao fim do segundo terço do livro, é o clímax do curto e notável romance “Na praia”, de Ian McEwan (Companhia das Letras, 2007, tradução de Bernardo Carvalho).
Mais do que clímax – desgraçadamente precoce, como logo veremos –, trata-se do fulcro da narrativa, o momento decisivo ao redor do qual o autor inglês organiza com virtuosística economia de meios toda a melancólica história – pregressa e futura – dos jovens Edward e Florence. Ah, sim: é uma cena cômica também.
Dito isso, não consigo imaginar a leitura de um trecho tão intenso como algo que impeça ninguém de procurar o livro para encará-lo desde o início – pelo contrário. Longe de conter uma informação terrível que o suspense da história exija manter oculta, a cena da noite de núpcias do casalzinho inglês num hotel à beira-mar é de uma banalidade pungente.
Como eles chegaram até ali, naquele estado quase inverossímil de nervosismo e inépcia, e o que farão depois disso – eis o que torna “Na praia” um romance imperdível, espécie de hino triste aos derradeiros mártires de uma era de repressão sexual herdada de tempos vitorianos e que naquele 1962, thank goodness, estava com seus dias contados.
Ele tomou a sua mão esquerda e chupou as pontas dos dedos dela sucessivamente, pondo a língua nos calos de violinista. Eles se beijaram, e foi nesse momento de relativo otimismo para Florence que ela sentiu os braços dele tensos – de repente, num movimento hábil e atlético, ele havia rolado por cima dela, e, embora seu peso estivesse em grande parte apoiado nos cotovelos e antebraços dos dois lados da cabeça de Florence, ela estava presa, indefesa e um pouco sufocada debaixo daquele corpanzil. Ficou desapontada por ele não se alongar em carícias na área pubiana, desatando de novo aquele frêmito estranho e progressivo. Mas sua preocupação imediata – um desdobramento da repulsa ou do medo – era manter as aparências, não deixar de lhe corresponder e não se humilhar, não parecer uma pobre escolha entre todas as mulheres que ele conhecera. Ela precisava conseguir passar por isso. Nunca o deixaria saber a luta que foi, o que lhe custou, parecer calma. Não tinha outro desejo além de querer agradá-lo e fazer da noite um sucesso, nenhuma outra sensação além da consciência da ponta do pênis, estranhamente frio, batendo e socando repetidamente à entrada e ao redor da sua uretra. Achou que seu pânico e repugnância estavam sob controle, amava Edward, e todos os pensamentos dela se concentravam em ajudá-lo a obter o que tanto desejava e em fazê-lo amá-la ainda mais. Foi com esse espírito que ela escorregou a mão por entre a sua virilha e a dele. Ele se levantou um pouco para permitir-lhe a passagem. Ficou satisfeita consigo mesma ao lembrar que o manual vermelho informava ser perfeitamente aceitável que a noiva “conduzisse o homem para dentro”.
Primeiro tocou os testículos e, agora sem medo nenhum, curvou os dedos delicadamente em volta desse corpo extraordinário e enrugado que tinha visto nas formas mais variadas em cães e cavalos, sem nunca acreditar realmente que pudessem se acomodar em humanos adultos. Puxando os dedos pela parte inferior, chegou à base do pênis, que segurou com extremo cuidado, já que não fazia ideia de quão sensível ou robusto ele era. Arrastou os dedos ao longo do seu comprimento, notando com interesse a textura sedosa, até a ponta, que acariciou ligeiramente; e então, espantada com sua própria impudência, recuou um pouco para baixo, para segurar o pênis com firmeza, lá pela metade, e empurrá-lo para baixo, um leve ajuste, até senti-lo tocar os grandes lábios.
Como podia saber que cometia um erro terrível? Teria puxado a coisa errada? Será que apertara demais? Ele soltou um gemido, uma série complicada de vogais agonizantes e ascendentes, o tipo de som que ela ouvira certa vez numa comédia no cinema quando o garçom, dando voltas de um lado para outro, parecia estar prestes a derrubar uma enorme pilha de pratos de sopa.
Horrorizada, ela o soltou, enquanto Edward, levantando-se com um olhar atordoado, e os músculos das costas arqueados em espasmos, esvaiu-se em gotas sobre ela, enchendo seu umbigo, cobrindo sua barriga, as coxas, e até uma parte do queixo e da rótula, com um fluido viscoso e tépido. Foi uma calamidade, e ela entendeu na hora que a culpa era sua, que era inepta, ignorante e estúpida. Não devia ter interferido, nunca devia ter acreditado no manual. Se a jugular dele tivesse arrebentado, não teria parecido mais terrível. Era próprio dela intrometer-se cheia de si num assunto de impressionante complexidade; deveria saber muito bem que sua atitude nos ensaios do quarteto de cordas não tinha nenhuma pertinência ali.
E havia outro elemento, a seu modo bem pior e muito além do controle dela, evocando memórias que ela decidira fazia muito tempo não serem realmente suas. Enchera-se de orgulho, apenas meio minuto antes, por dominar os sentimentos e parecer calma. Mas agora era incapaz de conter o nojo original, o horror visceral de estar encharcada daquele fluido, do muco de outro corpo. Em segundos, o líquido se enregelara sobre sua pele, sob a brisa do mar, e ainda assim, bem como ela imaginara, parecia escaldá-la. Nada na sua natureza teria impedido o grito momentâneo de asco. A sensação do fluido escorrendo pela pele em riachos caudalosos, sua estranheza leitosa, o cheiro íntimo de goma, e com ele o fedor de um segredo guardado no mofo do seu confinamento – ela não conseguia, tinha de se ver livre daquilo. Enquanto Edward se encolhia diante dela, ela se virou e se pôs de joelhos, arrancou um travesseiro de sob a colcha e passou a se limpar freneticamente. Ao fazê-lo, deu-se conta da repulsa e da indelicadeza do seu comportamento, e de que devia contribuir para a humilhação dele vê-la remover desesperadamente da pele uma parte dele. Na verdade, não era assim tão fácil. Grudava nela conforme ela esfregava, e em algumas partes já estava secando num verniz rachado. Ela era duas pessoas – a que arremessou o travesseiro longe em sinal de exasperação e a que refletia e se odiava por isso. Era insuportável que ele estivesse a observá-la, a mulher histérica e punitiva com quem ele insensatamente se casara. Ela podia odiá-lo pelo que ele testemunhava e que nunca mais esqueceria. Tinha de se afastar dele.
Num acesso de raiva e de vergonha, ela pulou da cama. E, ainda assim, o seu outro eu observador parecia lhe pedir que se mantivesse calma, não propriamente em palavras. ‘Mas é isso justamente enlouquecer.’ Ela não podia olhar para ele. Era um suplício ficar no quarto com alguém que a conhecia a esse ponto. Ela recolheu os sapatos no chão, correu através da antecâmara, passando pelos restos do jantar, saiu pelo corredor, desceu as escadas, transpôs a entrada principal e, contornando o hotel pelo lado, ganhou o gramado musguento. E, mesmo depois de finalmente chegar à praia, não parou de correr.
8 Comentários
HOJE EM DIA ISSO PROVAVELMENTE NÃO ACONTECE MAIS. AS MULHERES ESTÃO ALÉM DE MUITO MAIS AUDACIOSAS, MAIS DESEJOSAS DO SUCO DA VIDA. NA INTERNET VÊ-SE CEMAS QUE ATÉ O DIABO DUVIDA.
CARLOS
Um dos livros mais tristes que já li! Mas dentro desta perspectiva é um livro genial, raro, porque leva a várias reflexões: como um momento pode levar a toda uma mudança de destino; como devemos ser mais flexíveis com nós mesmos e com os outros; como na vida, na sua essência, não há aquela ajuda de plantão e muitas vezes o pior, o triste, o frustrante, pode acontecer e lamentavelmente acontece. Enfim, um dos livros para Leitores com “L” maiúsculo indispensáveis!!! Ótimo “post”.
QUEM É QUE LÊ UM LIXO CLICHÊ DESSES ?????
Excelente fragmento narrativo!
Um dos livros mais tristes q já li! Li..reli…e cada vez gostei mais.. Inesquecível, marcante.
Perfeito!
O autor foi buscar [passo a crer] uma narrativa que ocorre em consultórios de terapia, onde uma personalidade não se reconhece como tal [me chamo Anália, mas quem se encontrou com você foi a Josefa]. É comum encontrarmos pessoas com várias personalidades [múltiplas, vide As 3 Faces de Eva].
O gozo resultante do sexo é indescritivelmente delicioso. O sexo é necessário à reprodução, óbvio, mas animalesco, deselegante. Somente a dopagem hormonal nos leva a fingir que não percebemos a promiscuidade a que nos leva. Daí o meu desprezo pelo texto do escritor (que não conheço e não perderia meu tempo em lê-lo).