O nono capítulo de “Vidas secas” (1938), de Graciliano Ramos, em que o narrador descreve a morte da cachorra Baleia, é provavelmente o mais lido e lembrado em toda a obra do escritor alagoano. O crítico Álvaro Lins afirmou que ele “se acha revestido de uma humanidade talvez maior que a dos seres humanos”, querendo dizer que o romancista – avaliado por ele em seus livros anteriores como sarcástico e revoltado demais, e que enfim se permitira em “Vidas secas” ser “mais humano, sentimental e compreensivo” – pode ter sido mais pródigo nessas qualidades ao falar da vira-lata doente do que ao retratar o vaqueiro Fabiano, sua mulher, sinha Vitória, e seus dois filhos.
Se entendermos “humano” como sinônimo de “sentimental”, como Lins parece fazer, não há dúvida de que a morte de Baleia se destaca entre os quadros quase autônomos que compõem “Vidas secas”. O que não é difícil de explicar quando se leva em conta que Graciliano mergulha na psicologia de personagens que a seca e as condições sociais do Nordeste brasileiro situam numa espécie de humanidade rebaixada, faixa crepuscular entre a condição de bicho e a de gente. A relativa humanização da cachorra tem como contraponto a relativa animalização dos personagens humanos. No capítulo 2, feliz por ter conseguido conduzir a família retirante a uma nova fazenda onde os aceitavam, Fabiano diz para si mesmo: “Fabiano, você é um homem”. Mas logo corrige a “frase imprudente” e inverte tudo, até a posição do vocativo: “Você é um bicho, Fabiano”.
A cena abaixo poderia facilmente escorregar para a pieguice nas mãos de um escritor menos seguro de sua linguagem. Mas o seco Graciliano, um dos maiores prosadores da literatura brasileira, está no auge da forma. Suspeitando que Baleia sofre de hidrofobia, Fabiano decide matá-la. Sinha Vitória leva os dois meninos para dentro de casa e tenta lhes tapar os ouvidos. No filme homônimo dirigido em 1963 por Nelson Pereira dos Santos, a cena (clique aqui) é antológica. Lida, é mais poderosa ainda.
Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, sinha Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.
Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.
Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis. (…)
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera.
Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinha Vitória guardava o cachimbo. (…)
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
13 Comentários
Sérgio, “Vidas Secas” é certamente um dos maiores romances da literatura brasileira e o capítulo “Baleia” (além de ser o primeiro a ser escrito e de ter sido o motivador do romance) é o mais tocante do livro.
Graciliano mostra-se um gênio ao humanizar uma cadela e irracionalizar toda uma família.
Que Cena!
Graciliano nos fez um pouco mais ‘humanos’ com a ‘humanização’ da Baleia, nessa cena incrível…
Só pra lembrar que esse capítulo era um conto. E foi esse conto que deu origem ao livro.
Graciliano foi um dos homens que não teve vergonha de escrever sobre o Nordeste.
Hoje, vi algo que me mostrou como a cultura nordestina ainda sofre preconceito. O “escritor” Alberto Villas cometeu um erro absurdo ao inserir palavras amplamente usadas no Nordeste em seu “Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Morta”. O que você acha disso?
(Mais sobre: http://estacao018.blogspot.com.br/2012/06/preconceito-ou-desleixo-numa-lingua.html)
Gozado, eu li com uns 18 amos, e tinha a cena como uma das grandes passagens que já li, mas agora, depois de reler esse fragmento, não sei, me soou forçado, apelativo e o pior, meio óbvio. Abs
Concordo com a maravilha literária aqui citada, porém, em termos de obra-prima, e também de humanidade, ainda fico com São Bernardo. Perfeição!
Foi a primeira vez que andei por aqui.
Li o post da Clarice e o affair com a inglesa coração de leoa, que achei uma bobagem.
Já ia desistindo, quando vi o Graça, e disse aos meus botões: vou dar uma chance para esse cara.
Explico o porquê; se a inglesa não gostou de Clarice, sinceramente, seus ronrons não deveriam ser mesmo lá grande coisa…
Mas o Graça foi muito bem tratado.
E o seu blog, pelo menos no meu caso, acabou sendo salvo por uma cachorrinha sarnenta.
Moral da história: quem quiser uma namorada inglesa de alma quente arrume uma cachorra viralata criada no semiarido nordestino.
Cachorros são analógicos, gatos são digitais | Todoprosa - VEJA.com
triste que ria que não acabace assim
porque isso ser tam triste mas com tanta compaixÂo…
Sempre choro nesse capitulo…
São Bernardo (Graciliano Ramos) - Livro & Café
Muito comovente e aguçante sentimentalmente falando, como a torrente de “emoções” e sensações inundam a mente e o corpo de Baleia:”…Caiu;tentou-se erguer; esmoreceu; aquietou-se; sentiu sede; latiu, uivou, desejou morder Fabiano; assustou-se; sentiu-se impotente; recordava-se de responsabilidades; ‘Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração’.
Mais incrível ainda, o final da narrativa com a impressão de desfalecimento da cachorra, “Baleia queria dormir”, e a penetração no “fantástico” que esperara Baleia por toda sua vida: “Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.”