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Que cena! A queda no abismo em ‘Perdas e danos’

07/12/2012

Cheguei ao romance Damage (“Perdas e danos”), com o qual a irlandesa Josephine Hart debutou na literatura em 1991, por meio de sua adaptação cinematográfica. O filme dirigido por Louis Malle e estrelado por Jeremy Irons e Juliette Binoche me parece até hoje – tratei de revê-lo recentemente – uma obra rara em sua combinação de simplicidade narrativa com capacidade de cavucar o fundo do poço. É difícil tirar da cabeça certas cenas do explosivo triângulo amoroso que tem no vértice a bela Anna Barton, figura misteriosa e sombria, e nos cantos da base seu jovem noivo Martyn, jornalista e gente boa, e o pai dele, Stephen Fleming, importante político inglês e narrador da história.

Lançado no Brasil pela editora Record com tradução de Ana Deiró, o livro deixa claro que Malle, longe de extrair leite de matéria rochosa (como acontece algumas vezes no trânsito tumultuado entre literatura e cinema), apenas foi feliz ao transpor para a tela a atmosfera perturbadora criada pela autora. A linguagem do romance é simples a ponto de ser convencional, mas o que Hart consegue dizer com ela tem uma força notável. Nem só de alta literatura vive a seção “Que cena!”

A cena abaixo, convém avisar, é puro spoiler. Quem não conhece a história da tela ou das páginas, mas gostaria de entrar em contato com ela sem saber de antemão qual é o clímax, pode optar por parar de ler aqui. Sinceramente, não acredito que a preocupação se justifique: sei a história de cor e ainda sou afetado por ela. Mas fica o alerta.

Desconfiado da traição de sua futura mulher, embora nem sonhe com o envolvimento de seu pai, Martyn chega a um predinho antigo em que os corredores dão para um vão interno, protegidos por uma grade baixa. Sobe alguns andares, arromba uma porta. Atrás dela, Anna e o respeitável Fleming pai estão engajados num ato sexual sofisticado que envolve algodão nos ouvidos de ambos e uma venda nos olhos dela.

Quando a porta cedeu sob o seu peso, por um segundo fui o único a ver Martyn. Com dedos frenéticos, arranquei o silêncio de nossas orelhas. Anna gritou:

– O que foi? O que foi?

Puxei a fita, descobrindo-lhe os olhos, e, um segundo depois, nós dois o ouvimos murmurar:

– Impossível. Impossível. Possível.

Emoldurado pelo umbral da porta, ele pareceu se balançar para a frente e para trás no patamar estreito.

Levantei-me para ajudá-lo. Ele levantou os braços sobre a cabeça, como para se proteger de algum golpe terrível. Então, como uma criança recuando, andando para trás mecanicamente, como um robô afastando-se passo a passo de um mal tenebroso, inimaginável e inconcebível até em pesadelo, o olhar fixo e pasmo no rosto que o destruíra, ele caiu silenciosamente por sobre o corrimão, rumo à morte no piso de mármore lá embaixo.

A energia de meu corpo quando o tomei nos braços, o pescoço desajeitado como um talo de flor partido, era inútil em toda a sua força. Onde, onde está a delicadeza que poderia tê-lo embalado? São necessários seios e curvas, harmonia e suavidade, para os corpos mortos de nossos filhos, quando os apertamos contra o peito na realidade brutal de nossa perda. A dureza de meu peito não lhe dava ao rosto um lugar para se esconder. Meus braços musculosos me pareciam obscenos e ameaçadores, ao tentarem juntar e trazer os contornos partidos de seu corpo para junto de mim.

O vestíbulo vazio se tornou um poço de mármore para dentro do qual as pessoas atiravam perguntas de esperança em vozes chocadas.

– Quer que eu chame um médico?

– Posso ajudar?

– Já liguei para a polícia.

– Quer que eu traga um cobertor? Para o senhor? Para o corpo?

Tomei consciência da minha nudez.

– Ele está morto? Oh, ele está morto?

E então Anna veio andando lentamente em nossa direção. Vestida e penteada, hediondamente calma, ela disse:

– Acabou. Acabou tudo.

Tocando-me de leve o ombro e olhando para Martyn sem um traço de piedade, ela como que deslizou rumo à porta e desapareceu na escuridão da noite.

4 Comentários

  • Athayde 08/12/2012em09:12

    Sérgio, lembro-me do filme. Assisti-o em video-cassete. Se não me engano, a fita veio em um pacote promocional da Folha de São Paulo. O final do filme é uma das cenas mais tocantes – espero que também seja no livro, pois você acaba de me instigar
    a sua leitura.

  • clara lopez 08/12/2012em10:55

    Pelo lido, no filme é melhor ::)) abraço,

  • Milla Belem 09/09/2014em20:21

    Sim, com certeza fui instigada a ler o livro.