“Para um homem de sua idade, cinquenta e dois, divorciado, ele tinha, em sua opinião, resolvido muito bem o problema de sexo.” A frase inicial do romance “Desonra”, livraço lançado em 1999 pelo escritor sul-africano J.M. Coetzee (Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira), é tão lapidar quanto enganadora.
Não, o professor de literatura David Lurie, especializado em poesia romântica e funcionário de uma universidade na Cidade do Cabo, não resolveu nada bem o “problema de sexo”. Por isso mesmo, na primeira cena abaixo, entrará com sua aluna Melanie, jovem, bonita e aspirante a atriz, numa zona crepuscular entre o sexo consentido e o forçado – tristíssimo, de todo modo, como costuma ser o sexo em Coetzee, ainda que a princípio pareça representar para o cinquentão desiludido uma inesperada volta às boas graças de Afrodite.
“Estupro não, não exatamente”, avalia Lurie. O leitor que porventura não ficar convencido será apresentado cerca de cem páginas mais tarde, para que possa comparar, a um estupro incontestável. Mas essa é outra história.
As duas cenas abaixo se encontram no começo do romance (nada de spoiler desta vez, moçada) e marcam o início do processo de desonra, destituição e, por fim, completa aniquilação que faz de Lurie um personagem inesquecível nessa alegoria enigmática – mais uma especialidade coetziana – da África do Sul pós-apartheid: um homem orgulhoso, mas que também nada tem de inocente, reduzido à impotência pelo ambiente politicamente correto da universidade, de um lado, e pela nova, confusa realidade sociopolítica de seu país, do outro.
Às quatro horas da tarde seguinte, ele está no apartamento dela. Melanie abre a porta com uma camiseta amassada, shorts de ciclista e chinelos com a forma de esquilo de história em quadrinhos, que ele acha bobos, de mau gosto.
Ele não avisou que vinha; ela fica surpresa demais para resistir ao intruso que impõe sua presença. Quando ele a pega nos braços, ela fica mole como uma marionete. Palavras duras como bastões batem o delicado labirinto de seu ouvido. “Não, agora não!”, ela diz, se debatendo. “Minha prima vai voltar logo!”
Mas nada o detém. Ele a leva para o quarto, arranca aqueles chinelos absurdos, beija-lhe os pés, perplexo com o sentimento que ela evoca. Algo a ver com sua aparição no palco: a peruca, o quadril rebolando, a fala rude. Estranho amor! Mas da aljava de Afrodite, deusa da espuma do ar, sem dúvida nenhuma.
Ela não resiste. Tudo o que faz é desviar: desvia os lábios, desvia os olhos. Deixa que ele a leve para a cama e tire sua roupa: até o ajuda, levantando os braços e depois os quadris. Pequenos arrepios de frio a percorrem; assim que está nua, enfia-se debaixo do cobertor xadrez como uma toupeira que se enterra, e vira as costas para ele.
Estupro não, não exatamente, mas indesejado mesmo assim, profundamente indesejado. Como se ela tivesse resolvido ficar mole, morrer por dentro enquanto aquilo durava, como um coelho quando a boca da raposa se fecha em seu pescoço. De forma que tudo o que lhe fosse feito, fosse feito, por assim dizer, de longe.
“Pauline vai voltar a qualquer momento”, ela diz, quando acaba. “Por favor. Você tem de ir embora.”
Ele obedece, mas quando chega ao carro é tomado por tal desânimo, tal embotamento, que fica encurvado sobre a direção, incapaz de se mexer.
Um erro, um grande erro. Nesse momento, ele não tem a menor dúvida, ela, Melanie, está tentando se limpar, se limpar dele. Ele a vê enchendo a banheira, entrando na água, de olhos fechados como uma sonâmbula. Gostaria de entrar numa banheira também.
(…)
Nessa mesma tarde, batem na porta do escritório e entra um jovem que ele nunca viu antes. Sem ser convidado, senta-se, dá uma olhada na sala, sacode a cabeça para as estantes de livros.
É alto e magro; tem um cavanhaque fininho e um brinco na orelha; está de jaqueta preta de couro e calças pretas de couro. Parece mais velho que a maioria dos alunos; parece um problema.
“Então é você o professor”, diz. “Professor David. Melanie falou de você.”
“É? O que ela falou?”
“Que trepou com ela.”
Faz-se um longo silêncio. Então, ele pensa: vai mesmo ter de pagar o preço. Eu devia saber: uma menina dessas não vem sem preço.
“Quem é você?”, pergunta.
O visitante ignora a pergunta. “Acha que é esperto”, continua. “Um garanhão. Acha que ainda vai se achar tão esperto quando sua mulher ficar sabendo o que você anda aprontando?”
“Já chega. O que você quer?”
“Não é você que vai dizer quando chega.” As palavras brotam depressa agora, num tropel de ameaça. “E não pense que pode ir entrando assim na vida das pessoas e saindo quando bem entende.” Os olhos pretos do moço rebrilham. Ele se inclina para a frente e bate com a mão para a direita e para a esquerda. Os papéis voam de cima da mesa.
Ele se levanta. “Agora chega! É melhor você sair agora!”
“’É melhor você sair agora!’”, o rapaz repete, imitando o jeito dele. “Tudo bem.” Levanta-se e vai calmamente até a porta. “Tchau, professor Chips! Mas espere só para ver!” E sai.
Um valentão, pensa. Ela está envolvida com um valentão e agora eu também estou envolvido com um valentão! Sente o estômago retorcer.
Fica esperando por ela até tarde essa noite, mas Melanie não aparece. Em vez disso, seu carro, estacionado na rua, é vandalizado. Pneus esvaziados, cola dentro das fechaduras, jornal colado no para-brisa, arranhões na pintura. As fechaduras têm de ser trocadas; a conta chega a seiscentos rands.
“Tem ideia de quem fez isso?”, pergunta o chaveiro.
“Nenhuma”, ele responde, seco.
Um comentário
Esse livro de Coetzee é genial. uma das coisas que mais me atraiu no romance é como ele caracteriza o protagonista, um individuo em descompasso com sua realidade , seja ela histórica ou pessoal. A cena acima é um exemplo disso. muito mais importante do que saber se houver ou não estupro é como o personagem principal fica “alheio” a isso, indiferente quase. No entanto essas caracteristicas serão trabalhadas posteriormente ao longo da obra dando o tom do padrão comportamental do protagonista, uma espécie de D. quixote cinzento de uma Africa do sul depois apartheid.