O fascinante, inteligentíssimo, patético professor universitário Moses Herzog, protagonista de “Herzog”, romance lançado em 1964 por Saul Bellow (foto, 1915-2005), foi descrito por Philip Roth como “intenso porém passivo, reflexivo porém impulsivo, equilibrado porém louco, emotivo, complicado, um perito em matéria de dor, (…) um palhaço quando se torna um vingador indignado, um bobo em quem o ódio gera comédia, um sábio estudioso num mundo traiçoeiro, e no entanto ainda perdido no mar de amor, confiança e entusiasmo pelas coisas que é característico da infância…”. Talvez pareça confuso para quem não teve o prazer de ler essa obra-prima do romance americano, mas de alguma forma todas essas características contraditórias estão presentes na cena abaixo.
Herzog acaba de chegar a Chicago – vindo de Nova York, onde mora hoje – com o plano de lavar com sangue a honra ultrajada pela ex-mulher, a bela Madeleine, mãe de sua filhinha Junie, ao abandoná-lo para ficar com seu ex-melhor amigo, o ruivo Valentine Gersbach – que, para agravar sua humilhação, tem uma perna mecânica. Na tradução de José Geraldo Couto para a Companhia das Letras, estes três parágrafos compõem o que deveria ser o clímax do livro, caso Herzog não fosse tão “intenso porém passivo”: com uma arma no bolso, ele se esgueira como um ladrão pelo quintal da casa de Madeleine e termina por mergulhar no olho negro do ciúme e da destituição, numa cena magistral em que as fronteiras entre a inocência e a malícia, a banalidade mais rotineira e o pesadelo mais inconcebível são tão fluidas quanto a água de uma banheira em que boiam brinquedos de criança.
Avançou para o corredor externo. Por sorte os vizinhos não estavam em casa e ele não teve que se preocupar com as luzes deles. Tinha dado sua olhada em Madeleine. Era sua filha que ele queria ver agora. A sala de jantar estava desocupada – vazio de depois do jantar, garrafas de Coca-Cola, guardanapos de papel. Em seguida vinha a janela do banheiro, mais alta que as outras. Ele lembrava, no entanto, que tinha subido num bloco de cimento para tentar retirar a tela de proteção do banheiro, mas descobrira a tempo que não havia janela contra tempestade para substituí-la. De modo que a tela ainda estava ali. E o bloco de cimento? Estava exatamente onde o tinha deixado, em meio aos lírios-do-vale do lado esquerdo do corredor. Arrastou-o para o lugar certo, o rangido abafado pelo barulho da água na banheira, e ficou em pé sobre ele, com o flanco apoiado na parede. Tentou amortecer o som da respiração abrindo a boca. Na água agitada em que boiavam brinquedos brilhou o corpinho de sua filha. Sua menina! Madeleine tinha deixado o cabelo preto dela crescer, e agora ele estava preso para o banho com um elástico de borracha. Ele se derreteu de ternura por ela, cobrindo a boca com a mão para abafar qualquer som que a emoção o fizesse emitir. Ela ergueu o rosto para falar com alguém que ele não podia ver. Acima do rumor da água ele a ouviu dizer alguma coisa, mas não conseguiu distinguir as palavras. O rosto dela era o rosto dos Herzog, os grandes olhos escuros eram os olhos dele, o nariz era o nariz de seu pai, de tante Zipporah, de seu irmão Willie, a boca era dele próprio. Mesmo a pitada de melancolia na beleza dela – aquilo vinha da mãe dele. Vinha de Sarah Herzog, pensativa, desviando levemente o rosto ao refletir sobre a vida à sua volta. Comovido, ficou observando a menina, respirando de boca aberta, o rosto meio coberto pela mão. Besouros voadores passavam por ele. Seus corpos pesados se chocavam contra a tela, mas não atraíam a atenção dela.
Então um braço se esticou para fechar a torneira – um braço de homem. Era Gersbach. Ele ia dar banho na filha de Herzog! Gersbach! Agora a cintura dele era visível. Ele entrou no campo de visão de Moses dando passos rígidos ao lado da antiquada banheira redonda, se curvando, se endireitando e se abaixando de novo – sua claudicação veneziana, até que, com grande dificuldade, começou a se ajoelhar e Herzog, torcendo o pescoço, viu seu peito e sua cabeça. Colado à parede, com o queixo sobre o ombro, Herzog viu Gersbach arregaçar as mangas de sua camisa esporte estampada, puxar para trás a cabeleira espessa e brilhante, pegar o sabonete, e ouviu-o dizer, não sem doçura, “Certo, agora chega de micagens”, pois Junie estava rindo, se retorcendo, fazendo ondas, espirrando água, mostrando seus dentinhos brancos, franzindo o nariz, provocando. “Agora fique quietinha”, disse Gersbach. Limpou as orelhas dela com um paninho, o que a fez dar gritinhos, limpou seu rosto, as narinas, enxugou sua boca. Ele falava com autoridade, mas foi carinhosamente e com sorrisos de falsa braveza e risadas ocasionais que ele deu banho nela – ensaboou, enxaguou, enchendo de água seus barquinhos de brinquedo para enxaguar suas costas, enquanto ela emitia gritinhos e se contorcia. (…) Então Gersbach ordenou que ela ficasse em pé e ela se inclinou um pouco para permitir que ele lavasse sua pequena fenda. O pai dela arregalou os olhos. Uma pontada o atravessou, mas a coisa foi feita com rapidez. Ela se sentou de novo. Gersbach despejou água limpa sobre ela, levantou-se com dificuldade e abriu a toalha de banho. Com firmeza e dedicação, enxugou-a e em seguida, com um grande pompom, aplicou pó na sua pele. A menina dava pulinhos de prazer. “Chega dessa bagunça”, disse Gersbach. “Ponha já o pijaminha.”
Ela correu para fora de seu campo de visão. Herzog ainda viu uma vaga nuvem de pó flutuar sobre a cabeça inclinada de Gersbach. O cabelo ruivo dele subia e descia. Estava esfregando a banheira. Moses bem que podia matá-lo agora. A mão esquerda tocou a arma, aninhada no bolo de rublos. Podia atirar em Gersbach enquanto ele despejava metodicamente o sabão em pó no retângulo amarelo da esponja. Havia duas balas no tambor… Mas elas permaneceriam lá. Herzog tinha clara consciência disso. Com muita suavidade ele desceu de seu poleiro e atravessou de novo o quintal sem fazer ruído. Viu sua menina na cozinha, erguendo os olhos para Mady, pedindo alguma coisa, e esgueirou-se pelo portão para o beco. Disparar sua pistola não passou de um pensamento.
Leia também: Que cena! A xícara de café de ‘Dom Casmurro’
4 Comentários
É, Sérgio, Que Cena!
Parabéns pela ideia!
Essas cenas incríveis servem para lembrar-nos dos grandes nomes (e Bellow é um ótimo exemplo de genialidade).
Inebriante! Essa seção é o caso de clássico instantâneo, no sentido de destacada construção do espírito humano, culminância de uma ideia, à la Leo Naphta. Insto q poste mais amiúde essas pequenas pérolas literárias. Grande abraço.
Obrigado, Bruno. Pode ter certeza de que, mal chegou, a seção Que cena! já ocupa um lugar privilegiado na economia de afetos aqui do blog. Vou considerar seriamente a possibilidade de torná-la mais frequente. Um abraço e bom fim de semana.
Há algum tempo atrás li, dentre outras, a entrevista de Bellow na Paris Review. Herzog ficou materlando na minha cabeça, mas, no fim, passou batido. Essa cena deu o empurrãozinho que faltava pra eu mandar vir o livro.