Em 2006, oito anos depois de sair na Espanha, chegou ao Brasil o romance “Os detetives selvagens”, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras, tradução de Eduardo Brandão). A data merece ser lembrada porque se trata de um acontecimento: embora já tivesse dado as caras por aqui com a novela “Noturno do Chile”, foi naquele momento, três anos após sua morte, que o escritor chileno – um desterrado que viveu no México antes de se radicar na Espanha – finalmente explodiu no Brasil, com toda a potência de sua literatura maior.
Acabou virando moda, como se sabe. Os lançamentos de Bolaño, inclusive de títulos pouco importantes, se sucederam, e em 2010 seu tijolão póstumo “2666” teve muito mais repercussão do que havia tido “Os detetives…”, embora seja este, a meu ver, seu melhor livro.
É praticamente impossível extrair desse romanção polifônico, estruturado como um caleidoscópio de vozes que se complementam e se negam em igual medida, um trecho curto que dê ideia da amplitude que Bolaño consegue abarcar e das profundezas que logra sondar com seus personagens desesperados.
Estes são escritores em sua maioria, “artistas” todos, e vivem como farsa dolorosa suas vidas “artísticas” num mundo em que a relevância de tais atividades – inversamente proporcional à virulência das guerras de vaidade que elas motivam – se apequena diante de uma cordilheira de indiferença.
O duelo entre o escritor e o crítico, episódio anunciado no trecho abaixo na voz do pintor espanhol Guillem Piña, se aproxima de capturar pelo menos em parte a atmosfera peculiar, cômica e sombria, que emana de “Os detetives…”. Ele mesmo um artista em crise, ex-falsificador de quadros de Picabia que afirma se sentir às vezes como o Nu descendo a escada, famosa tela de Marcel Duchamp, Piña fala de seu reencontro em Barcelona, após muitos anos de distância, com seu amigo Arturo Belano, alter ego do autor.
O absurdo do duelo motivado por uma resenha supostamente ruim que ainda não foi escrita é desdobrado no livro com mudança de voz narrativa, entre outras surpresas, mas isso eu deixo como isca suculenta para quem se aventurar nessa obra-prima.
Um dia, antes de sumir pela última vez, veio à minha casa e me disse: vão me fazer uma crítica ruim. Eu lhe preparei um chá de camomila e fiquei calado, que é o que se faz, creio, quando se tem que ouvir uma história, triste ou alegre que seja. Mas ele também ficou calado, e por um instante permanecemos assim, ele olhando para o chá ou para a rodelinha de limão que flutuava em seu chá, e eu fumando um Ducados, creio que sou um dos poucos que ainda fuma Ducados, quer dizer, dos poucos de minha geração, até o próprio Arturo agora fuma tabaco virgínia ultralight. Passado um momento, perguntei, só para falar alguma coisa: vai ficar para dormir em Barcelona?, e ele negou com a cabeça, quando ficava para dormir em Barcelona dormia na casa de minha amiga (em quartos separados, mas essa precisão perturba tudo), não em minha casa, jantávamos juntos, sim, e às vezes saíamos os três para dar umas voltas no carro de minha amiga. Enfim, perguntei se iria ficar para dormir, e ele disse que não podia, que precisava voltar ao vilarejo onde morava, um vilarejo da costa a pouco mais de uma hora de trem. Voltamos outra vez a ficar calados os dois, e eu comecei a pensar no que ele tinha dito sobre uma crítica ruim, e por mais que tenha pensado não entendi nada, de modo que parei de pensar e fiquei esperando, que é o que faz, contra todo prognóstico, o ‘Nu descendo a escada’, e precisamente nisso consiste sua estranha crítica.
Por um instante só ouvi o ruído que Arturo fazia ao tomar chá, sons apagados provenientes da rua, o elevador que subiu e desceu algumas vezes. De repente, quando eu não pensava nem ouvia nada, ouvi Arturo repetir que um crítico iria baixar o sarrafo nele. Não tem muita importância, falei. São os cavacos do ofício. Tem importância sim, replicou. Você nunca deu bola para eles, falei. Mas agora dou, devo estar me tornando um burguês, ele disse. Em seguida explicou que seu penúltimo e seu último livro tinham semelhanças que pertenciam ao território dos jogos impossíveis de decifrar. Eu tinha lido seu penúltimo livro, tinha gostado, e não tinha a menor ideia do seu último livro, de modo que não pude dizer nada a esse respeito. Só pude lhe perguntar: que tipo de semelhanças? Jogos, Guillem, ele disse. Jogos. A porra do ‘Nu descendo a escada’, as porras das suas falsificações de Picabia, jogos. Mas onde está o problema?, perguntei. O problema, ele disse, é que o crítico, um tal de Iñaki Echavarne, é um casca de ferida. É um crítico ruim?, perguntei. Não, é um bom crítico, ele disse, pelo menos não é um crítico ruim, mas é um casca de ferida fodido. E como você sabe que ele vai fazer a resenha de seu último livro, se ele ainda nem está nas livrarias? Porque outro dia, explicou, quando eu estava na editora, ele ligou para a assessora de imprensa e pediu a ela meu romance anterior. E daí?, perguntei. Daí que eu estava ali, na frente da assessora de imprensa, ela lhe disse olá, Iñaki, olhe que coincidência, Arturo Belano está aqui, bem na minha frente, e o escroto do Echavarne não disse nada. E o que ele deveria ter dito? Pelo menos olá, Arturo respondeu. Como ele não disse nada, você concluiu que ele vai desancar você?, perguntei. E se desancar, qual o problema? Tanto faz! Olhe, Arturo disse, Echavarne brigou faz pouco com o Catão das letras espanholas, Aurelio Baca, conhece? Nunca li, mas sei quem é, respondi. Tudo por causa de uma crítica que Echavarne fez ao livro de um amigo de Baca, não sei se a crítica era justificada ou não, não li o livro. A única coisa certa é que aquele romancista tinha Baca para defendê-lo. E a crítica que Baca dedicou ao crítico foi dessas de fazer chorar. Pois bem, não tenho nenhum papa-hóstias pra me defender, absolutamente ninguém, de modo que Echavarne pode soltar os cachorros em cima de mim com toda tranquilidade. Nem mesmo Aurelio Baca poderia me defender, porque no meu livro, não no que vai sair, no penúltimo, debocho dele, se bem que duvido muito que ele tenha lido. Você debocha do Baca? Rio um pouco dele, Arturo disse, mas não creio que ele nem ninguém tenha notado. Isso descarta Baca como defensor, admiti, enquanto pensava que eu também não tinha percebido o tal deboche que agora parecia preocupar meu amigo. Pois é, Arturo disse. Deixe o Echavarne soltar os cachorros, ora, falei, e daí, isso tudo é bobagem, você deveria ser o primeiro a saber. Todos nós vamos morrer, pense na eternidade. Mas é que Echavarne deve estar morrendo de vontade de se desforrar em alguém, Arturo disse. Ele é tão medíocre assim?, perguntei. Não, não, é muito bom, Arturo disse. E então? Não é disso que se trata, é uma questão de se exercitar os músculos, Arturo disse. Os músculos do cérebro?, indaguei. Os músculos de alguma parte, e eu vou ser o sparring do Echavarne para seu segundo round ou seu oitavo round com Baca, Arturo disse. Entendi, a disputa vem de longe, eu disse. E o que você tem a ver com tudo isso? Nada, eu só vou ser o sparring, Arturo respondeu. Ficamos um instante sem dizer nada, pensando, enquanto o elevador descia e subia, e o ruído que fazia era como o ruído dos anos durante os quais não tínhamos nos visto. Vou desafiá-lo para um duelo, Arturo disse finalmente. Quer ser meu padrinho? (…)
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Como num jogo de ping pong em que o rebatedor, no último lance, ao dar uma forte estocada, corre rápido ao lado oposto da mesa para aparar o seu próprio tiro. “Quer ser meu padrinho?” Que se venga el Echavarne!, deve ter bradado o Guillem.
O que acho interessante nesse livro é a maneira como o autor leva o leitor a enveredar por esse conflito de egos ao longo do livro. A presunção dos real-visceralistas em contraponto à sua total irrelevância exceto o microcosmo de amigos é de causar às vezes pena, às vezes raiva. De certa forma é uma luz sobre a própria condição humana.