O clássico “O emblema vermelho da coragem”, de Stephen Crane (Penguin-Companhia, 2010, tradução deste que vos digita, 216 páginas), romance definitivo sobre a Guerra Civil Americana que o precoce autor (1871-1900) lançou quando tinha apenas 24 anos e nenhuma experiência de batalha, tira pelo menos parte de sua estranha força do contraste entre o vastíssimo cenário épico da guerra e o olhar impressionista por meio do qual o narrador em terceira pessoa filtra tudo para o leitor: o de um jovem, ensimesmado e torturado soldado de primeira viagem que, já em seu batismo de fogo, se descobre um covarde. (Com típico excesso explicativo, chamou-se no mercado brasileiro “A glória de um covarde” a adaptação cinematográfica de 1951 dirigida por John Huston.)
Depois de fugir do fogo e passar a vagar sozinho pelos campos em luta feroz com sua consciência, cruzando com grupos de soldados vivos e mortos em situações variadas, o “soldado jovem” que conduz a história, chamado Henry Fleming, encontra numa longa coluna de feridos que caminha em direção à retaguarda seu amigo e companheiro de pelotão Jim Conklin, o “praça alto”, que está evidentemente nas últimas. Ao lado de outro personagem, o “soldado maltrapilho”, o jovem passa a acompanhá-lo. O espetáculo sinistro e ao mesmo tempo meio burlesco da morte de Jim é uma das cenas mais emblemáticas do tom do livro, que Joseph Conrad, amigo e admirador de Crane, considerou superior a “Guerra e Paz” como retrato da realidade humana de uma batalha.
Virou-se e viu o amigo correndo aos trancos e tropeções na direção de um pequeno grupo de arbustos. Diante da cena, seu coração parecia querer abandonar o corpo. Deu um gemido de dor. Em pouco tempo, ele e o maltrapilho saíam no encalço do outro. Era uma estranha corrida.
Quando alcançou o praça alto, começou a lhe dirigir apelos com todas as palavras que conseguia encontrar. “Jim… Jim… o que você está fazendo… o que houve… você vai se machucar!
Havia determinação no rosto do praça, que protestava mecanicamente, mantendo os olhos fixos no plano místico de suas intenções. “Não… não… não toca em mim… Me deixa, me deixa!”
O jovem, horrorizado e cheio de assombro com o comportamento do amigo, começou a questioná-lo com voz trêmula. “Aonde você vai, Jim? O que você está pensando? Hein, Jim, me diz…”
O praça alto se virou como se estivesse encarando perseguidores implacáveis. Havia em seus olhos um apelo enérgico. “Me deixa, está bem? Me deixa um minuto!”
O jovem se ressentiu. “Mas, Jim…”, disse, atordoado, “o que que há com você?”
O praça alto se virou e, capengando de modo periclitante, seguiu em frente. O jovem e o maltrapilho seguiram timidamente atrás, como se tivessem levado uma chibatada e se sentissem incapazes de enfrentar de novo o homem debilitado. Ideias solenes começaram a lhes ocorrer. Havia algo de ritualístico na ação do moribundo, algo que o aparentava a um devoto de alguma religião insana, capaz de chupar sangue, espremer carne, amassar osso. Sentiam um misto de reverência e medo. Deixaram-se ficar para trás, receando um possível acesso do homem a poderes ocultos e tenebrosos.
Por fim, viram-no parar e ficar imóvel. Apressando o passo, distinguiram em seu rosto a expressão de quem finalmente havia encontrado o lugar pelo qual lutara. Seu vulto magro estava ereto; as mãos pendiam calmas ao lado do corpo. O homem esperava pacientemente algo que viera encontrar. Estava no local combinado. O jovem e o maltrapilho aguardaram.
Houve um silêncio.
De repente, o peito do condenado começou a subir e descer num movimento tenso. A violência do ataque foi crescendo até que parecia haver um animal dentro dele, pulando e escoiceando furiosamente para se libertar.
Aquele espetáculo de estrangulamento gradual fez o jovem tiritar. A certa altura, quando o amigo revirou os olhos, viu neles algo que o levou a jogar-se no chão, chorando. Ergueu a voz, num último e supremo chamado.
“Jim… Jim… Jim…”
O praça alto abriu a boca e disse, erguendo a mão: “Me deixa… não toca em mim… me deixa…”.
Fez-se um novo silêncio de expectativa.
De repente, o corpo do homem se enrijeceu e se aprumou. Depois, foi sacudido por um demorado tremor. Ele fitava o vazio. Pareceu aos dois observadores que havia uma profunda, estranha dignidade nas linhas firmes de seu rosto medonho.
Uma estranheza aos poucos o envolvia. Por alguns instantes, a tremedeira de suas pernas o fez dançar uma horrenda quadrilha. Seus braços desferiam golpes no ar, junto da cabeça, com entusiasmo demoníaco.
O corpo alto estava teso e esticado ao máximo. Houve um leve ruído de dilaceramento e ele começou a tombar para a frente, lento, reto, como uma árvore caindo. Uma contorção muscular brusca fez seu ombro esquerdo tocar primeiro no chão.
O corpo pareceu quicar levemente ao encontrar a terra.
“Nossa!”, disse o soldado maltrapilho.
O jovem acompanhara, enfeitiçado, essa cerimônia no local combinado. As expressões de seu rosto traduziam toda a agonia que imaginava sentir o amigo.
Então, de um salto, chegou mais perto e olhou o rosto vítreo. A boca estava aberta, mostrando os dentes num riso.
Olhando a aba do casaco, aberta ao lado do corpo, o jovem notou que ela parecia ter sido mastigada por lobos.
Voltou-se, pálido e furioso, na direção do campo de batalha. Ergueu um punho ameaçador. Parecia a ponto de disparar um insulto.
“Inferno…”
O sol vermelho estava pregado no céu, como um lacre.
3 Comentários
Esse do Crane tá na minha lista.
Em tempos… http://www.guardian.co.uk/books/2010/may/29/ten-best-riots-literature-mullan
http://www.mhpbooks.com/tear-gas-and-petrol-bombs-protests-in-literature/
Me desculpe mas estou em dúvida se a palavra “ande” no quarto parágrafo não seria “onde”?
É “aonde”, Ataliba. Obrigado pela correção. Abs.