“O mosteiro frio, austero, longe de mim, mosteiro monumental, de pedra, patrimônio histórico. Eu, de carne.” O confronto tão sucintamente expresso nessa descrição do Mosteiro de São Bento é a principal chave de leitura do mais conhecido livro de memórias do carioca Antonio Carlos Villaça (1928-2005), “O nariz do morto” (Civilização Brasileira), publicado em 1970.
Cobrindo da infância ao início da idade adulta do autor, com destaque para o tempo em que, aos 21 anos, sua atormentada fé católica o levou a se internar no tradicional mosteiro carioca para virar monge (não deu certo), essa obra-prima contém algumas das melhores cenas que já li sobre a luta entre espírito e carne, sagrado e profano, permanência e finitude, dilemas com os quais o autor se debateu a vida inteira – e que a cena abaixo, brilhante vinheta de humor filosófico, captura com perfeição. (Para a resenha que publiquei neste blog em 2006, “O escritor que era monge que era escritor”, clique aqui.)
O gordíssimo Villaça ficou mais conhecido como personagem do que como escritor. Dono de um arquivo implacável de anedotas dos bastidores da vida intelectual brasileira de seu tempo, que conheceu na intimidade, foi de fato um grande observador e retratista maldoso de tipos humanos. No entanto, o estilista da língua que se revelou neste livro de memórias, o primeiro de uma série, merece atenção para além do círculo retrito do aplauso crítico que colheu em vida. A linguagem mordaz, raivosa e direta, de pontuação personalíssima, produz um efeito de rara espontaneidade, em permanente (des)equilíbrio entre o registro erudito e o chulo – e é só dele.
Que o Brasil esteja à altura de redescobrir Villaça, amém.
Íamos como bons carneiros, honesto rebanho negro, para a oração, o canto matinal, uns calmos, devagar, senhores do tempo e de si mesmos, alguns chegando ao coro antes até do sino, outros nervosos, atrasados, acabando de vestir-se em viagem pelo claustro sempre os mesmos… Às cinco e meia, o sino grande, da torre. Começava a solene oração coral, insípida, monótona, como paisagem gaúcha. Ou túnel pouco iluminado. Eu ia indo, tateante. Dom Simplício chegava sempre atrasado, correndo, e errava na recitação, no canto. Não sabe cantar, o coitadinho. Está no coro há vinte e cinco anos (hoje). Dom Severo arrota. Nunca percebi ninguém arrotar assim alto, fundo. E cochila. Dom Isidoro reza para dentro tão baixo, tão sem abrir a boca. E cochila. O coro é velho navio no nevoeiro, às apalpadelas, e não há porto. Alguns, mais afoitinhos, os líderes, dirigem a salmodia monocórdia, espessa. Impedem com suas vozes e, às vezes, vozeirões que a cantilena cesse, morra, ou pelo menos baixe de tom. Mas o tom baixava incrivelmente quando fui corista, no Mosteiro. (…)
O Ofício prossegue. O grande problema do mosteiro é apenas prosseguir. É preciso prosseguir, não parar, varar o tempo, escapar do tempo, driblar o tempo, ainda que seja pela morte dos homens.
Eu rezava tão baixinho que ninguém ouvia. Nunca lancei a voz, nunca ousei lançar a voz, naquele mercado do divino. Esperava que a inibição baixasse suas águas, para fazer minha entrada ruidosa, que nunca fiz, na bolsa de valores místicos em que me pôs minha inocência. Tremia, por dentro.
Vi que tudo aquilo não tinha sentido, era vago, vazio, ‘flatus vocis’. Dois ou três competiam com suas vozes, assanhados. O resto ia atrás, caudatariamente, lentamente, bocejando. Bocejos de acédia, bocejos da alma ferida, cansada de lutar em vão, bocejos ou peidos, gemidos da boca ou dos intestinos, gritos de cima ou de baixo, aflições viscerais ou bucais, angústias todas do mesmo tubo, que somos nós – simples tubos em que se dá a passagem, como num túnel, de legumes, verduras e carnes, leite e água, vinho, verdade e mentira, um túnel, sua entrada e sua saída, um túnel vertical, padecente, caminhante, pensante, falante, sorridente, decadente, morrente. Tubo digestivo, boca e ânus.
Vi que éramos afinal uns pobres, uns diabos, uma coisa pífia, ronronante, ventres sentados, ajoelhados, ventres de pé – falando latim com Deus. Deus mudo, silêncio enigmático, senhor de nenhuma intimidade, lá do outro lado de não sei quê, imenso, onipotente, onipresente, onisciente, encarnado num rapaz oriental, que faleceu numa cruz aos trinta anos pouco mais ou menos e há dois mil anos quase etc.
Eu achava aquilo cada vez mais esquisito. Não afirmava, não negava. Achava esquisito. Era um direito que eu tinha, não era?, achar esquisito, eu não duvidava. Eu achava esquisito. Aquilo era esquisito. O que é que era esquisito, meu filho? Aquilo, seu filho da puta.
Um comentário
Obrigado pela dica de leitura,como normalmente esse espaço presta tal serviço.