O título acima exige uma explicação. Não fica claro se o jagunço Riobaldo, narrador da obra-prima “Grande sertão: veredas”, publicada em 1956 pelo mineiro Guimarães Rosa, chega realmente a vender sua alma a Satanás. O que sabemos é que certa noite, transcorridos três quartos da narrativa, ele se dirige a um lugar ermo e sinistro até no nome, Veredas-Mortas, com tal intenção. A ideia é ganhar o poder que lhe falta para derrotar o arquivilão Hermógenes, vingando a morte do chefe Joca Ramiro – e de quebra agradar Reinaldo, também conhecido como Diadorim, seu querido colega de bando, que nada deseja na vida além dessa vingança.
A incerteza sobre a consumação do pacto faustiano atravessa todo o romance e não se desfaz nem mesmo quando o narrador parece descartá-la categoricamente no famoso encerramento do livro: “O diabo não há!… Existe é homem humano. Travessia”. O fato é que ele nunca mais será o mesmo depois desse encontro que não houve – mas talvez tenha havido – nas Veredas-Mortas. A cena é bela e estranha, com a estrangeirice erudita do português “sertanejo” inventado por Rosa contribuindo para o lusco-fusco do que “não é falável”. Uma coisa é certa: vindo do além ou bombeado de suas próprias entranhas de “homem humano”, o poder que Riobaldo buscava lhe é concedido.
O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia. “Deus ou o demo?” – sofri um velho pensar. Mas, como era que eu queria, de que jeito, que? Feito o arfo de meu ar, feito tudo: que eu então havia de achar melhor morrer duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E em troca eu cedia às arras, tudo meu, tudo o mais – alma e palma, e desalma… Deus e o Demo! – “Acabar com o Hermógenes! Reduzir aquele homem!…” –; e isso figurei mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de alguma razão. Do Hermógenes, mesmo, existido, eu mero me lembrava – feito ele fosse para mim uma criancinha moliçosa e mijona, em seus despropósitos, a formiguinha passeando por diante da gente – entre o pé e o pisado. Eu muxoxava. Espremia, p’r’ali, amassava. Mas, Ele – o Dado, o Danado – sim: para se entestar comigo – eu mais forte do que o Ele; do que o pavor d’Ele – e lamber o chão e aceitar minhas ordens. Somei sensatez. Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento. Cobra desfecha desferido, dá bote, se deu. A já que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopio do pé-de-vento – o ró-ró girado mundo a fora, no dobar, funil de final, desses redemoinhos: …o Diabo, na rua, no meio do redemunho… Ah, ri; ele não. Ah – eu, eu, eu! “Deus ou o Demo – para o jagunço Riobaldo!” A pé firmado. Eu esperava, eh! De dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu repuxei, toda, aquela firmeza me revestiu: fôlego de fôlego de fôlego – da mais-força, de maior-coragem. A que vem, tirada a mando, de setenta e setentas distâncias do profundo mesmo da gente. Como era que isso se passou? Naquela estação, eu nem sabia maiores havenças; eu, assim, eu espantava qualquer pássaro.
Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir? Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar:
– “Lúcifer! Satanás!…”
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.
– “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!”
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – o que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; e fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranquilidades – de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas. Arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta, eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!
8 Comentários
O maior livro que li na vida. Maravilhoso, inesgotável.
Guimarães Rosa é um escritor que ainda não descobri. Sei que muita gente boa o respeita e o considera um escritor extraordinário. Acho que o que mais tenho dificuldade na sua obra é pegar o espírito dessa sua prosa “dialetal”, única. Esse trecho mesmo postado, umas coisas muito intrincadas. Como estrangeiros conseguem entender Guimarães Rosa? Porque os há. (O Vargas Llosa mesmo foi só elogios com ele no último ‘Roda Viva’). Deve tê-lo lido no original; uma tradução de GR deve ficar uma m*****, porque não é possível que haja equivalente de um português desse nas línguas… Bem, acho que tá na hora de parar de deixá-lo pra depois e encará-lo. (Me arrepiei todo na parte que se começa a invocar o tinhoso, hehe.)
Acho que houve o encontro, ele incorporoubo tinhoso e trancendeu-o – trancendeu-se. O trecho é bem escolhido mas acho que Rosa nesse Sertão faz mais sentido no conjunto todo, não em partes. Como Hilda Hilst, aliás – separou, algo se perde. Abraço por me lembrar.
Se der, retifique, por favor: transcendeu; incorporou; obrigada por me lembrar (prometo nunca mais escrever em tablet :))
O livro é maravilhoso. Espinhoso, sem dúvida. Tive que tentar duas vezes até lê-lo do início ao fim ( só penei mais em relação ao Som e Fúria do Faulkner- que também recomendo, é bom pra c… -rs ) .
O segredo – que pra mim funcionou -e lê-lo com voz baixinha. Aí você sente o poder da prosa de Guimarães. Confesso que os contos dele não me pegam – mas Grande Sertão sim. E no livro há um momento em que Riobaldo diz um Meu Amor que consegue fazer de uma expressão tão usada algo belo, devastador. Essa travessia compensa.
É um livro inesgotável. A cada leitura há algo novo, novos encantamentos, novas frases e poesias a serem degustadas. Já o li três vezes, sendo que na terceira nem era minha intenção, apenas folheei um pouco e… não consegui parar. E sei que o mesmo ocorreria se o pegasse de novo hoje. Conheço gente que o coloca com a capa voltado para fora da estante, em destaque, soberano diante de outros livros. Quem impregnar-se no universo de Grande Sertão não estará apenas praticando leitura; estará sim, vivendo uma inesquecível experiência.
“Ao matar seus demônios, cuidado para não destruir o que há de melhor em você” ou algo assim… (Nietzsche) – Parece que um dos focos da tensão está na invocação (pessoal): “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!” (note-se: ‘dos meus Infernos’) – a chave, talvez, desse pacto silencioso…
SONHOU LARGADO
Olha o sonho que me contaram. Mané sonhou que andava por uma estrada que se perdia na distância. De repente viu, na margem direita da via, um velho de branco, cabelos e barba também brancos. Peguntou-lhe: “Moço, se eu continuar, direto, onde vou dar?”
O velho respondeu-lhe: ” Se quiser, pode dar aí, mesmo.” Quando Mané ia liberar um palavrão, o velho advertiu-lhe: “Posso ler seus pensamentos. Sou Deus, não blasfeme!”
“Ouça-me! Não se devie desta estrada. Durante a sua caminhada verá, muitas vicinais, mas não se devie, siga sempre, em linha reta. ” E Mané seguiu. Depois de andar alguns quilômetros, viu, agora na margem esquerda, um homem bem vestido, terno e gravatas italianos, sapatos de couro alemão que foi logo perguntando o Mané: “Moço você sabe quem sou eu?” “Pelo jeito de se vestir, deve ser um deputado, cujo carro quebrou.” Respondeu Mané. ” Não. Sou o chefe dos demônios! e se você se prostrar de joelhos diante de mim, e adorar-me, dar-te-ei o comando de todas essas seitas brasileiras, nascidas no caldeirão religioso norte-americano, elas são milhões e rendem mais do que Apple,Samsung e Facebook, juntos.” Mané, como era religioso e já se candidatara a deputado, sem sucesso, ficando muito endividado, aceitou. O que é que vocês esperavam. Foi somente um sonho, gente.