Nos contos de “Ficções”, um dos maiores livros do século XX, Jorge Luis Borges propõe vários jogos literários em seu estilo inimitável (embora não falte quem tente imitá-lo), no qual se misturam de forma quase inverossímil a seriedade mortal da investigação erudita sobre os limites da linguagem e uma espécie de molecagem irônica que torna possível ler seus rigorosos artefatos ficcionais com um prazer e um abandono normalmente associados à literatura de gênero – como o policial, por exemplo, que o autor argentino admirou e cultivou. Ou ainda o romance de espionagem, inspiração para uma de minhas “Ficções” preferidas, embora menos famosa do que “Funes, o memorioso”, “Pierre Menard, autor do Quixote” ou “A Biblioteca de Babel”.
Estou falando de “O jardim de veredas que se bifurcam” (ou “O jardim de caminhos que se bifurcam”, ao gosto do freguês: o original fala em senderos), cuja maravilhosa cena final, na tradução de Carlos Nejar para a editora Globo, é reproduzida abaixo. Como costuma ocorrer nesta sessão, a leitura da cena é puro spoiler e talvez deva ser evitada por quem ainda não leu o livro, mas pretende lê-lo. Algo que, tendo a chance, deveria começar a fazer ainda hoje.
Na Primeira Guerra, um espião chinês a serviço da Alemanha, o catedrático de inglês Yu Tsun, que está na Inglaterra, acaba de descobrir que foi desmascarado e tem em seu encalço o capitão Richard Madden, do serviço secreto britânico. Depois de consultar a lista telefônica, o chinês toma um trem, salta no vilarejo de Ashgrove e vai bater na porta de um certo Stephen Albert. Este homem, por uma dessas coincidências que só ocorrem (será?) na literatura, revela-se o maior especialista mundial na obra de Ts’ui Pen, um velho escritor chinês dado como maluco, autor de um longo e desconexo romance, e que vem a ser antepassado de Yu Tsun. Albert conta ao recém-chegado que descobriu numa carta de Ts’ui Pen, após longos anos de estudo, a chave de seu romance aparentemente louco no qual, entre outras incongruências, personagens que morrem hoje aparecem vivos amanhã. “O jardim de veredas que se bifurcam’ é o próprio livro de Ts’ui Pen, imagem do tempo como ele o concebia.
– Numa charada cujo tema é o xadrez, qual é a única palavra proibida?
Refleti um momento e respondi:
– A palavra ‘xadrez’.
– Exatamente – disse Albert. – ‘O jardim de veredas que se bifurcam’ é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção de seu nome. Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes, é quiçá o modo mais enfático de indicá-la. É o modo tortuoso que preferiu, em cada um dos meandros de seu infatigável romance, o oblíquo Ts’ui Pen. Confrontei centenas de manuscritos, corrigi os erros que a negligência dos copistas introduziu, conjeturei o plano desse caos, restabeleci, acreditei restabelecer, a ordem primordial, traduzi a obra toda: consta-me que não usa uma única vez a palavra ‘tempo’. A explicação é óbvia: ‘O jardim de veredas que se bifurcam’ é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts’ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns existe o senhor e não eu; em outros, eu, não o senhor; em outros, os dois. Neste, em que me deparo com favorável acaso, o senhor chegou à minha moradia; em outro, o senhor, ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; em outro, digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma.
– Em todos – articulei não sem certo tremor – agradeço e venero sua recriação do jardim de Ts’ui Pen.
– Não em todos – murmurou com um sorriso. – O tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo.
Voltei a sentir aquela pululação de que falei. Pareceu-me que o úmido jardim que rodeava a casa estava saturado até o infinito de invisíveis pessoas. Essas pessoas eram Albert e eu, secretos, atarefados e multiformes em outras dimensões de tempo. Alcei os olhos e o tênue pesadelo se dissipou. No amarelo e negro jardim havia um único homem; mas esse homem era forte como uma estátua, mas esse homem avançava pela vereda e era o capitão Richard Madden.
– O futuro já existe – respondi –, mas sou seu amigo. Posso examinar de novo a carta?
Albert levantou-se. Alto, abriu a gaveta da alta escrivaninha; deu-me por um momento as costas. Eu havia preparado o revólver. Disparei com o máximo cuidado: Albert caiu, sem uma queixa, imediatamente. Juro que sua morte foi instantânea: fulminante.
O resto é irreal, insignificante. Madden irrompeu, prendeu-me. Fui condenado à forca. Abominavelmente venci: comuniquei a Berlim o secreto nome da cidade que devem atacar. Ontem a bombardearam; li isso nos mesmos jornais em que apresentaram à Inglaterra o enigma de ter sido o sábio sinólogo Stephen Albert assassinado por um desconhecido, Yu Tsun. O Chefe decifrou esse enigma. Sabe que meu problema era indicar (por sobre o estrépito da guerra) a cidade que se chama Albert e que não achei outro meio a não ser matar uma pessoa com esse nome. Não sabe (ninguém pode saber) minha imensa contrição e cansaço.
16 Comentários
Entendi.
Que nos jardins da vida as bifurcações se deem no lugar certo e na hora certa, diante apenas de verdadeiros amigos. Ah, não li o livro. E precisa mesmo…
Grande cena, mesmo. Agora, é preciso dizer que Nejar foi o pior tradutor que o Borges teve no Brasil. Ele cometeu erros cômicos, como traduzir “pasionaria” por “escuro livro da paixão” ou “orillero” por “margeador” (tudo isso no primeiro parágrdo de “Funes”. Na cena transcrita, “mi innumerable contrición” se torna a banal “minha imensa contrição”.
Tem problemas mesmo, Ernani. “Inumerável”, no caso, dialoga com o que o Albert disse pouco antes (“inumeráveis futuros”). Como “inumerável contrição” soa um tanto esquisito (mais do que em espanhol, suponho), talvez fosse melhor usar “infinito” nos dois casos. E tem também bobagens incompreensíveis como traduzir uma palavra simples como “casa” por “moradia”. Mas no geral acho que nada disso chega a comprometer o trecho.
Será que ese Nejar usou o tradutor do google… ( Iiii, acho que to me metendo em coisa que não sou chamada.)
Olá Sérgio,
Estou com esse livro do Borges para ler ainda, por isso não li o trecho selecionado.
Viu que o Coetzee vem para Curitiba e Porto Alegre?
http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1350185
Abraço!
Você tem razão, há essa tabela entre o presente e os futuros. E inumerável soa esquisto em espanhol também. Esse parece ser um dos problemas insolúveis: quando é preciso traduzir literalmente, não traduzem; quando se devia mexer, traduzem literalmente. Agora, no caso do Nejar, bastava ter consultado o dicionário na maioria das vezes.
Já havia me esquecido do quanto Borges deve ao Edgar Poe: “Voltei a sentir aquela pululação de que falei. Pareceu-me que o úmido jardim que rodeava a casa estava saturado até o infinito de invisíveis pessoas. Essas pessoas eram Albert e eu, secretos, atarefados e multiformes em outras dimensões de tempo. Alcei os olhos e o tênue pesadelo se dissipou”. Mas, como o próprio Sérgio apontou, não é segredo a admiração do argentino pelo gênero policial e sabemos também da admiração por Poe, que, com Auguste Dupin, influenciou todo o gênero.
Contrição e cansaço são manifestações visíveis neste tempo de até meteoritos.
Borges, o inimitável.
Não sabia dessas paradas sobre as traduções do Nejar. Há mais de uma tradução do ‘Ficciones’ no Brasil? Quais os tradutores de Borges que recomendam? (Engraçado estarmos falando em tradução de uma língua tão próxima, que com um pouquinho de disposição conseguimos ler no original.)
Vamos ver o que o Ernani diz, JP – tem que respeitar quem traduziu o Quixote. Eu apostaria na de Davi Arrigucci Jr. para a Companhia das Letras.
“Inumeráveis futuros” não parece ser uma tradução imprópria de “innumerables futuros”. Apesar de não ser sempre recomendável tomar o caminho fácil da literalidade, o adjetivo inumerável é preciso não só no significado de infinito, incontável, mas sobretudo na carga de estranheza que transmite. Borges gostava de empregar palavras fora do uso comum, e esta característica dá ao seu estilo uma expressividade adequada para representar o universo do absurdo e do fantástico. Veja, por exemplo, o advérbio escolhido pelo mestre argentino na frase “Abominablemente he vencido” — como ele dá sabor singular a uma frase que, na pena de um escritor medíocre, certamente seria de uma banalidade atroz.
Vale
Rafael, não há problema algum com “inumeráveis futuros”, tradução fácil e indiscutível. O problema, se podemos chamar assim, aparece no fim com “inumerável contrição e cansaço”. Neste caso levantei a suspeita de uma estranheza maior do que a existente em espanhol, daí a sugestão de mudar o par inteiro para “infinitos”. Mas o Ernani nega que em espanhol soe menos esquisito e não tenho por que duvidar. Um abraço.
Não recomendo tradução nenhuma, mas não vão por mim, sou muito chato, fico implicando com detalhes. Uma boa pedida é pegar o original e usar a tradução como apoio. E ter o maior cuidado justamente nas semelhanças, que têm perdido tantos tradutores.
Às vezes ocorrem mesmo umas coincidências incríveis. Após ter dito ontem, que era engraçado estarmos discutindo traduções entre línguas tão próximas, qual não foi minha surpresa quando, à noite, por um motivo meramente acidental, me deparo com umas palavras de Miguel de Unamuno, dizendo isto: “[l]os españoles debemos leer a los portugueses en su propia lengua, y no traducidos. El esfuerzo para ello necesario es pequeñísimo y se lo debemos a nuestra común madre Iberia o Hispania.” Cheguei a Unamuno ontem porque estava folheando o “Verdade Tropical” do Caetano Veloso; na introdução do livro, ele refere um livro de Unamuno que o impactou e transformou seu relacionamento com as palavras e com a língua portuguesa. Pesquisando, não encontrei especificamente o livro, porque o basco foi um escritor prolífico e deixou muitos escritos sobre o tema. Todavia, encontrei um ensaio do qual tirei a citação. A quem interessar possa, ei-lo:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142010000200004&script=sci_arttext#1b
Abraços
Boa tarde, Sergio!
Sou fã do blog e sempre que posso acompanho as postagens. Foi por isso que, lendo outro dia aquele post sobre o fato de Paulo Coelho não ser considerado como um dos que tem o “domínio culto da literatura”, me (re)surgiu uma dúvida antiga:
Quais critérios diferenciam a literatura tida como clássica ou mais refinada da dita literatura comercial (Paulo Coelho, Dan Brown etc.)?
Pergunto isso porque gosto muito de ler, e gostei de alguns livros do Dan Brown e do Umberto Eco (apesar de não saber se este pode ser considerado comercial), por exemplo, mas também muito me agradaram livros mais clássicos, como “A escolha de Sofia”, “Crime e Castigo”, “1984” e por aí vai!
Ps.: Não sei se há uma ou mais respostas para a minha pergunta, mas pelo menos uma opinião sua já seria de muita valia.
Um abraço, e parabéns pelo belo trabalho do “Todoprosa”