“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.” Assim começa, inesquecivelmente, o único romance escrito pelo mexicano Juan Rulfo (1917-1986). Precisava mais?
“Pedro Páramo” (Record, 2004, tradução de Eric Nepomuceno), publicado em 1955, é uma obra-prima de escassas 150 páginas que projeta uma sombra gigante na paisagem da literatura latino-americana, multiplicando-se em ecos numa infinidade de outros livros – como as vozes dos mortos ecoam pelas ruas áridas das ruínas de Comala, a cidadezinha aonde chega Juan Preciado em busca de notícias do pai que não chegou a conhecer, o terrível Pedro Páramo.
Preciado segue instruções da mãe recém-falecida, que na juventude foi abandonada pelo poderoso proprietário da fazenda Media Luna pouco tempo depois de um casamento motivado por interesse financeiro. Chega tarde: Pedro Páramo também está morto. O roteiro dessa busca e a história do pai, que se confunde tragicamente com a do lugarejo, são narrados por uma multiplicidade de vozes mais ou menos incorpóreas. O clima é crescentemente onírico e o cenário, fantasmagórico sem deixar de ser muito concreto, numa mescla que talvez só pudesse existir no México, país em que a devoção à Santa Muerte, condenada pela Igreja Católica, é abraçada por milhões de pessoas.
Na cena abaixo, Juan Preciado conversa com a velha Damiana Cisneros, que trabalhou como cozinheira na Media Luna e conheceu sua mãe.
– Esta cidade está cheia de ecos. Parece até que estão trancados no oco das paredes ou debaixo das pedras. Quando você caminha, sente que vão pisando seus passos. Ouve rangidos. Risos. Umas risadas já muito velhas, como cansadas de rir. E vozes já desgastadas pelo uso. Você ouve tudo isso. Acho que vai chegar o dia em que esses sons se apagarão.
Isso era o que Damiana Cisneros vinha me dizendo enquanto atravessávamos a cidade.
– Teve um tempo em que andei ouvindo durante muitas noites o rumor de uma festa. Os ruídos chegavam até a Media Luna. Cheguei perto para ver aquela algaravia e vi isto: o que estamos vendo agora. Nada. Ninguém. As ruas tão solitárias como estão agora.
“Depois deixei de ouvir a festa. É que a alegria cansa. Por isso não estranhei quando aquilo terminou.
“Sim – tornou a dizer Damiana Cisneros. – Esta cidade está cheia de ecos. Eu já não me espanto. Ouço o uivo dos cães e deixo que uivem. Nos dias de brisa a gente vê o vento arrastando folhas das árvores, quando aqui, como você vê, já não há árvores. Existiram em algum tempo, porque se não tivessem existido de onde essas folhas sairiam?
“E o pior de tudo é quando você ouve as pessoas falarem, como se as vozes saíssem de alguma fenda, e ainda assim tão claras que dá para reconhecê-las. Sem tirar nem pôr, agora que eu vinha vindo, encontrei um velório. Parei para rezar um pai-nosso. E nisso estava eu, quando uma mulher se afastou das outras e veio me dizer:
“– Damiana! Roga a Deus por mim, Damiana!
“Soltou o xale e reconheci a cara da minha irmã Sixtina.
“– O que você está fazendo aqui? – perguntei a ela.
“Então ela correu para se esconder entre as outras mulheres.
“Minha irmã Sixtina, se por acaso você não sabe, morreu quando eu tinha 12 anos. Era a mais velha. E na minha casa fomos dezesseis de família, daí dá para você fazer as contas do tempo que ela está morta. E olha ela aí até agora, ainda vagando por este mundo. Por isso não se assuste se ouvir ecos mais recentes, Juan Preciado.
– A senhora também recebeu aviso de minha mãe dizendo que eu ia vir? – perguntei.
– Não. E aliás, o que foi feito da sua mãe?
– Morreu – disse.
– Já morreu? E de quê?
– Eu não soube de quê. Talvez de tristeza. Suspirava muito.
– Isso é ruim. Em cada suspiro é como se a gente se desfizesse de um sorvo de vida. Quer dizer que morreu?
– Morreu. Achei que a senhora tinha ficado sabendo.
– E por que eu haveria de saber? Faz muitos anos que não sei de nada.
– E então como é que a senhora deu comigo?
– …
– A senhora está viva, dona Damiana? Diga, Damiana!
E de repente me encontrei sozinho naquelas ruas vazias. As janelas das casas abertas ao céu, deixando aparecer os talos ressecados do capim. Paredes esfoladas que mostravam seus adobes revirados.
– Damiana! – gritei. – Damiana Cisneros!
O eco me respondeu: “…ana… neros…! …ana… neros…!”
3 Comentários
Quando li “Pedro Páramo”, o sentimento de profunda desolação instalou-se em mim desde a primeira página até a frase final do último capítulo. O livro de contos “Planície em chamas” também é ótimo. Os militantes de esquerda ainda hoje afirmam que as obras são um libelo às opressões sociais no México e – por analogia – a todos países da América do Sul. Os poetas e os amantes da literatura fantástica, como eu, veem nos escritos apenas magia no seu estado mais lancinante.
Nota dez.
Palmas para o México, para Rulfo, para Sérgio
e para a morte de todos nós.
Nunca lí Pedro Paramo. Afinal, a lista dos desejos muda a cada dia e vamos incluindo livros. Seu comentario, a primeira frase, a seleção de textos e já vou ler o livro. Muito grato, e cumprimentos meu caro.