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23/01/2012

Assolado por uma sensação de perda de tempo toda vez que abre “Em busca do tempo perdido”? Em busca de uma razão utilitária para ler – com perdão da palavra – ficção? Bem, a executiva americana Anne Kreamer também estava, até que descobriu uma série de pesquisas que associam a leitura de ficção literária com “inteligência emocional”, empatia, capacidade de imaginar o outro e se adaptar a situações novas, eficiência no trabalho em equipe – e, como consequência de tudo isso, maiores chances de descolar bons salários no mundo corporativo, especialmente na era da globalização.

O artigo (aqui, em inglês, no blog da Harvard Business Review) vale mais como curiosidade do que como guia de comportamento para futuros executivos. Por um lado, o que Anne Kreamer afirma não é muito diferente de algo que já virou lugar-comum entre letrados, uma espécie de último reduto de “relevância social” da ficção num mundo em que ela perdeu centralidade: aquilo que Amós Oz chama de “antídoto contra o fanatismo”, a “virtude moral” de exercitar sistematicamente a imaginação de tudo que ultrapassa o círculo limitado do ponto de vista individual do leitor. (O mesmo vale para histórias contadas em filmes, peças de teatro etc.? Vale, mas deve-se levar em conta que nenhuma outra arte narrativa deixa tanto espaço para a imaginação do receptor quanto a literatura.)

O que torna pitoresco o raciocínio da executiva é a disposição de apressadamente passar daí à auto-ajuda explícita, trazendo para a literatura corporativa uma visão utilitária da ficção semelhante àquela que, no campo mais amplo da terapia e do aprimoramento individual, levou o escritor Alain de Botton (de “Como Proust pode mudar sua vida”) a abrir em Londres um estabelecimento chamado, sem modéstia alguma, The School of Life.

Embora, por múltiplas razões – inclusive utilitárias – eu sempre esteja inclinado a subscrever o argumento pró-ficção de Amós Oz, fico cético diante da conversa de Anne Kreamer. Em parte por já ter cruzado com grandes leitores de ficção que, em termos de “inteligência emocional”, não se sairiam melhor que uma toupeira. Em parte também por ter uma imensa dificuldade de acreditar que as bibliotecas dos executivos mais bem pagos do mundo sejam tão interessantes assim. A razão principal, porém, é anterior a tudo isso: a convicção de que, embora possa acabar tendo diversos tipos de impacto na vida do leitor, o consumo apaixonado de ficção literária é um prazer que só se consegue abraçar num espírito de absoluta gratuidade. Quem entra nessa para ganhar alguma coisa já perdeu.

6 Comentários

  • Renan 23/01/2012em13:26

    Diante de todo esse otimismo, lembrei-me também das ideias do George Steiner sobre o paradoxo que envolve cultura e barbárie…

  • Arthur 23/01/2012em16:54

    Li esse artigo há alguns dias (alguém linkou no facebook). Seu último parágrafo expressa bem minha opinião sobre o assunto. Ao ver a listinha final de livros que ela indica para que as pessoas sejam mais bem-sucedidas (que inclui um livro do marido dela), acompanhada de resuminhos do que se pode ver na obra, percebi que, se as lesse, não seria por aquele viés.

  • Vanessa 24/01/2012em17:07

    “Em parte também por ter uma imensa dificuldade de acreditar que as bibliotecas dos executivos mais bem pagos do mundo sejam tão interessantes assim.” hehe, pura verdade.
    http://garotadistraida.wordpress.com

  • Anrafel 24/01/2012em23:02

    Existem três regras para se ler ficção. Felizmente, só Dona Anne Kreamer sabe quais são elas.

  • JAYME PORTUGAL 15/02/2012em09:22

    O título do artigo não cita em nenhum momento o grande GUIMARÃES ROSA.